Renees-le-Château.
11 de Novembro de 1888
«Marie
não parava de pensar em Bérenger. Para ela, não existia nenhum outro homem no
mundo. No entanto, não o tinha ido ver desde que se tinha mudado para a
sacristia, reconstruída de alto a baixo graças a uma doação de três mil francos
da Casa Real de França. Bérenger!,
Bérenger!, meu amor... Nas suas noites de solidão, abraçava-o, apertava-o
contra o seu corpo, cobria-o de beijos, chamando-o com todo o ardor da sua
juventude. Uma e outra vez, nos seus sonhos. Agora estava ali, a dez passos,
com as mãos vigorosas e fortes na cintura, a contemplar o tumulto que se
amontoava diante do estábulo. Ao seu lado, o armeiro parecia um homenzinho
adoentado. Marie avançou um passo, logo a seguir outro, sentiu que o coração
lhe rebentava. Ainda quererá alguma
coisa comigo? Libertou-se do xaile de lã e arregaçou a manga esquerda
do seu velho vestido, para assomar o braço fora da camisa. Por baixo do
cotovelo usava a fita vermelha, entrançada com os nós do amor. Tinha-a comprado
na primeira sexta-feira de Lua nova e feito o primeiro nó a recitar o Pater Noster,
até às palavras in tentationem.
Depois, tinha de substituir sed libera nos a malo por lude-aludei-ludeo.
Tinha repetido esta operação todos os dias, acrescentando um Pater e
entrançando outro nó, até completar os nove. Agora só tinha de tocar no
sacerdote para que o seu amor se tornasse realidade. Bérenger fez um gesto em
direcção ao estábulo e René e Brasc aproximaram-se com outros homens que tinham
sido seus inimigos. À sua volta, as crianças corriam aplaudindo e pulando. Porto te cotel, René, que farem de sang,
gritavam.
Os
homens traziam um porco, que se debatia lançando guinchos estremecedores. Marie
aproximou-se até onde estava Bérenger com o armeiro, agachou-se nas suas costas
e tocou na mão do sacerdote com o dedo mindinho. Já está feito! Bérenger não se tinha apercebido, pois estava
demasiado absorvido com a matança. Os homens já tinham o porco no chão, diante
de um grande alguidar de barro. Avança, magarefe!, ordenou Bérenger. O
magarefe, que não era outro que René, tirou uma faca afiada do cinto e
enterrou-a na cabeça do animal. A multidão estremeceu. As crianças ficaram
estáticas no seu lugar, a olhar boquiabertas em volta, ao mesmo tempo
satisfeitas e inquietas, curiosas e perversas. O porco guinchou, escoicinhou,
sacudiu-se tentando safar-se da dezena de braços que o mantinham prisioneiro. O
sangue espesso caiu no recipiente até que cessaram as convulsões da agonia. Os
homens relaxaram os braços e aliviaram um pouco os dedos. O fim tinha chegado.
René enterrou o punho no sangue e voltou-se para Bérenger. Marie sentiu um
calafrio. René era-lhe antipático, espantavam-na os seus lábios brancos, como
que cortados com um golpe na sua cara de besta. Sem rancor, cura, arrotou René,
traçando uma cruz vermelha na palma da mão do sacerdote, precisamente onde
Marie tinha tocado uns minutos antes.
Que
Madalena te proteja e proteja a tua família, respondeu Bérenger. Logo a seguir,
abraçou o camponês. Tinha seguido os conselhos do bispo e de Boudet. Desde o
seu regresso, tinha acedido a dialogar com os republicanos. Ao fim de alguns
dias, bebeu vinho e absinto em casa do ferreiro e a seguir conquistou os
corações de toda a gente, quando pediu aos céus invocando os santos, pelos seus
rebanhos e as suas colheitas. Os meses passaram. Bérenger organizava procissões
e dizia missas. Pediram-lhe chuvas, e tiveram chuvas. Uma noite, reuniram-se
todos para caçar o fantasma de um feiticeiro morto há trinta anos, e Bérenger
acompanhou-os. Quando começaram a chamar-lhe padre, Bérenger ofereceu-lhes
funcho de Narbonne, consagrado nove vezes no fogo da catedral de São João. No
dia seguinte, a erva sagrada apareceu em todas as janelas. Agora era seu amigo.
René chamou os outros, para que viessem dar-lhe um aperto de mão. Brasc, Simón,
Sarda, Delmas e Vidal vieram um atrás do ouro. Perdão e esquecimento. O Estado
tinha feito as pazes com a Igreja. As crianças riam com alegria e as mulheres
cantavam quando vertiam a água a ferver para raspar o porco. Cozinharam as
febras com os feijões, para o almoço. O padre tinha benzido o pão antes da
comida.
Bérenger,
satisfeito, deu uma palmadinha no ombro do armeiro. Vou preparar a igreja para
a missa desta noite, disse, sorridente. Então, viu Marie. Sentiu-se um pouco
inquieto. Deu uma olhada aos paroquianos. Estavam demasiado ocupados com o
porco, nem sequer se tinham apercebido da presença de uma forasteira. Olá...
Vim a Rennes-les-Bains... Bérenger pensou em Boudet. Era ele quem lha mandava.
Ofereciam-lhe aquela rapariga para que se abandonasse ao prazer sem conta nem
medida. Bastaria um gesto para a fazer sua. Sua! Há dezassete meses que não tocava numa mulher. Dezassete meses
com os quais tinha recuperado a paciência e a coragem. Dezassete meses durante
os quais tinha purificado o seu corpo. Em dezassete segundos, podia comprometer
outra vez a sua alma. Sorriu a Marie. Vem a minha casa, sussurrou, quando
passou ao lado dela. Marie sentiu as pernas fraquejar, o corpo amolecido, como
um arrebol arrastado pelo vento de Outono. Consegui!
Consegui!... Ainda me deseja. Quase sem se dar conta encaminhou-se para a sacristia,
abriu a porta, despiu-se diante da lareira e estendeu-se na cama sem demoras.
Fechou os olhos quando ouviu a porta. Logo a seguir, ouviu o matraquear dos
seus passos, o roçagar da sotaina, um estremecimento... Os pés aproximaram-se,
iá descalços, pelo chão. Não ouviu mais nada, mas também não abriu os olhos. O
peito subia-lhe e descia debaixo do lençol, tinha os mamilos arrepiados, as coxas
tensas, o calor apoderava-se do seu ventre. Uma mão roçou-lhe o corpo através
do tecido do lençol. Subiu-lhe pelas pernas, exactamente até à proximidade do
sexo. Só precisava de escorregar imperceptivelmente, com um golpe de anca) para
alcançar a ponta dos dedos. Bérenger ficou em silêncio. Inclinou-se sobre ela e
beijou-lhe as pálpebras. A seguir, beijou-lhe a boca, pousou os lábios num dos
seus seios. Marie atirou-se-lhe aos braços. Ansiava sentir o seu calor, a sua força,
a sua própria vida». In Jean-Michel Thibaux, O Mistério do Priorado de Sião,
Rennes-le-Chatêau, 1888, 2004, tradução de Jorge Fallorca, A Esfera dos Livros,
2006, ISBN 989-626-019-2.
Cortesia
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