1973.
Um coração solitário
«Com
a ponta da bengala, Ellis Selton remexeu as achas que ardiam mal. Imediatamente
surgiu uma longa chama que lambeu a madeira, torceu-se como uma víbora
fulgurante e elevou-se para as alturas
negras da chaminé. Com um suspiro, encostou-se no seu cadeirão. Nessa noite,
detestava o mundo inteiro e a si própria mais ainda, do que todo o universo.
Era sempre assim quando o peso da solidão se tornava insuportável. Lá fora,
rajadas de vento agreste faziam curvar as ramagens das velhas árvores do
parque, rodopiavam à volta do castelo e sibilavam nas chaminés em longos
gemidos. A tempestade fazia sair da terra todas as vozes profundas dos
desaparecidos. Pareciam vir dos tempos remotos até essa senhora, que incarnava os Selton. Já não havia homens
para receber a nobre herança, nem rapazes arrogantes e alegres de voz forte,
para quem essa tarefa não seria pesada. Havia apenas Ellis com os seus trinta e
oito anos e a sua perna defeituosa, Ellis a
coxa, a quem nunca ninguém falara de amor. É certo que teria podido casar-se
facilmente, mas aqueles que eram atraídos pela sua fortuna e o fausto do
palácio dos Selton inspiravam-lhe demasiado desprezo, para que se tivesse
resignado a unir a vida a qualquer deles. De recusa em recusa, tinha-se tornado
nessa criatura solitária de vestido cinzento, encerrada no seu orgulho e nas
suas recordações... O rugido do vento parou por um instante. Das profundidades
do parque veio o som abafado de uma sineta. O grande cão que dormia, com o
focinho sobre as patas, aos pés da senhora abriu um olho. O seu olhar encontrou
o da dona e rosnou surdamente. Quieto! Murmurou Ellis, pousando a mão sobre a
cabeça do animal. É certamente um criado que chega atrasado, ou um vizinho que
vem visitar o velho Jim.
Quis
retomar a meditação, continuando a afagar a cabeça sedosa do cão, mas este
recusava-se a adormecer. Com o pescoço esticado, escutava, como se o instinto
lhe fizesse seguir os passos dum visitante através do parque sacudido pela
tempestade. A sua atitude acabou por intrigar a dona. Seria alguma visita? Quem
poderia chegar àquela hora? A entrada silenciosa de Parry, o mordomo,
alguns instantes mais tarde, veio trazer a resposta. Habitualmente a própria
imagem da serena dignidade, o servidor parecia agora muito perturbado. Está ali
um homem, milady, um viajante que insiste em ver milady. Quem é? Que quer
ele? Pareces pouco à vontade, Parry. É que, trata-se dum visitante
estranho, milady, é uma gente que nós recebemos pouco. Só porque ele insistiu
muito, eu me decidi a incomodar e... Basta, Parry, basta! Gritou Ellis, batendo
impacientemente com a bengala no chão. Se te perdes nessas considerações, nunca
chegarei a saber do que se trata, e já que decidiste incomodar-me, quero saber
porquê.
O
mordomo estava de tal modo agitado, que antes de responder permitiu-se fazer
uma careta horrível, e depois os seus lábios pronunciaram com todo o desprezo
de que era capaz: É um francês, milady, um padre católico!... e traz um bebé!
O quê?... Estarás doido Parry? Ellis tinha-se erguido. O seu rosto
tinha-se tornado tão cinzento como o vestido e, sob as espessas sobrancelhas,
os olhos azuis brilharam de indignação. Um
padre? Com uma criança?
É, sem dúvida, algum refugiado perseguido pela polícia e que procura esconder o
fruto dum pecado! Um francês, ainda para mais!... Um desses miseráveis que
massacram a nobreza e cortam a cabeça ao seu soberano! E achas que eu vou receber isso...? Como protestante
convicta, Ellis Selton não gostava dos católicos e votava aos padres uma
espécie de horror cheio de desconfiança. Mas, à medida que falava, a voz
alimentada pela cólera, tinha abandonado os limites calmos exigidos pela
educação para atingir um tom agudo. Ia ordenar a Parry para pôr fora o intruso,
quando a porta da biblioteca, deixada entreaberta pelo mordomo, se abriu para
dar passagem a um homenzinho vestido de preto, trazendo qualquer coisa nos
braços. Creio, contudo que recebereis isto disse ele com uma voz doce. Não
se recusa aquilo que Deus envia. O recém-chegado era delgado, quase franzino. A
barba e a sujidade que lhe manchavam as faces, davam um aspecto inquietante ao
seu rosto magro e de traços incertos. O nariz arrebitado era uma nota insólita
e maliciosa, mas que visível miséria do seu possuidor, se tornava trágica. Todavia, grandes olhos cinzentos muito belos
e muito luminosos, ao
mesmo tempo cândidos e profundos, conferiam um certo encanto à sua fisionomia
inteligente, retirando-lhe qualquer grau de fealdade ou de banalidade. Apesar
da cólera, lady Selton notou também a delicadeza das suas mãos e a pequenês dos
pés, sinais infalíveis de alta estirpe, que contudo foram insuficientes para
acalmar a indignação que sentia. O seu rosto pálido tornou-se muito vermelho. Portanto
disse trocista é Deus quem vos envia?
Parabéns, não vos falta ousadia. Parry, chama gente e põe lá fora este
enviado do Senhor... e o bastardo que esconde consigo. Esperava ver a
aflição do desconhecido, mas nada se passou. Sem recuar um passo, o homem
contentou-se em abanar a cabeça, enquanto o seu belo olhar sincero se fixava na
velha senhora colérica». In Juliette Benzoni, Mariana. A Estrela de
Napoleão, tradução de Margarida Morais, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1972.
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de LCEditora/JDACT