quinta-feira, 21 de maio de 2015

O Arquivo Mitrokhine. Christopher Andrew e Vasili Mitrokhine. «O primeiro grande acontecimento literário em Moscovo depois da morte de Estaline foi a publicação em 1954, pela primeira vez desde 1945, de novos poemas de Boris Pasternak, o último grande autor russo…»

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«(…) Já sem respeito por ele, os camaradas troçaram simplesmente da sua perda de fibra. Em 24 de Dezembro foi anunciado que Beria tinha sido executado, depois de julgamento pelo Supremo Tribunal. Uma vez que nem a sua responsabilidade por assassínios em massa no tempo de Estaline nem a sua própria história como violador em série de raparigas menores podiam ser mencionadas publicamente, Por medo de que isso prejudicasse a reputação do Partido Comunista, foi, em vez disso, declarado culpado de uma conspiração surrealista para fazer renascer o capitalismo e restaurar o governo da burguesia em conjunto com os serviços de informação britânico e doutros países ocidentais. Beria tornou-se assim, depois de Iagoda e Iejov, nos anos 30, o terceiro chefe de segurança soviético a ser abatido por crimes que incluíam ter sido agente secreto (imaginário) britânico. Na verdadeira tradição estalinista, os assinantes da Grande Enciclopédia Soviética foram aconselhados a usar uma pequena faca ou uma lâmina de barbear para retirar a entrada sobre Beria e, depois, inserir um artigo substituto sobre o mar de Bering. A primeira declaração oficial de repúdio do estalinismo foi o agora célebre discurso secreto de Kruschev numa sessão à porta fechada do Vigésimo Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) em Fevereiro de 1956. O culto da personalidade de Estaline, declarou Kruschev, foi responsável por toda uma série de perversões excessivamente sérias e graves dos princípios do Partido, da democracia do Partido, da legalidade revolucionária. O discurso foi comunicado à organização do Partido do KGB numa certa secreta do Comité Central. A secção a que Mitrokhine pertencia levou dois dias a debater o seu conteúdo. Ele ainda recorda vivamente as conclusões do presidente da secção, Vladimir Vassilievich Jenikov (mais tarde residente do KGB na Finlândia): Estaline era um bandido! Alguns membros do Partido ficaram muito chocados ou foram prudentes e não disseram nada. Outros concordaram com Jenikov. Nenhum ousou fazer a pergunta que Mitrokhine estava convencido que esteva na mente de todos: onde estava Kruschev enquanto estes crimes se davam?
Na sequência do discurso secreto, Mitrokhine tornou-se demasiado sincero para o seu bem. Embora as suas críticas à maneira como o KGB tinha sido dirigido fossem suaves segundo os padrões ocidentais, no fim de 1956 Mitrokhine foi transferido das operações para os arquivos da PDB onde a sua principal função era responder a perguntas de outros departamentos e dos KGB provinciais. Mitrokhine descobriu que o arquivo pessoal de Beria tinha sido destruído por ordem de Kruschev, de modo a não deixar rasto do material comprometedor que tinha recolhido sobre os seus anteriores colegas. Ivan Alexandrovich Serov, presidente do KGB de 1954 a 1958, informou devidamente Kruschev de que os processos continham muito material provocatório e difamatório. Mitrokhine era um leitor ávido dos escritores russos que tinham caído em desgraça nos últimos anos do governo de Estaline e começaram a ser publicados outra vez em meados dos anos 50. O primeiro grande acontecimento literário em Moscovo depois da morte de Estaline foi a publicação em 1954, pela primeira vez desde 1945, de novos poemas de Boris Pasternak, o último grande autor russo a começar a sua carreira antes da Revolução. Publicado numa revista literária sob o título Poemas do Romance Doutor Jivago, eram acompanhados de uma breve descrição da obra épica ainda inacabada em que haviam de aparecer. Porém, o texto completo de Doutor Jivago, que seguiu o caminho serpenteante do seu enigmático herói da fase final do governo czarista até aos primeiros anos do regime soviético, foi considerado de longe demasiado subversivo para ser publicado e foi oficialmente rejeitado em 1956. No romance, quando Jivago ouviu as notícias da Revolução Bolchevique, ficou abalado e esmagado pela grandeza do momento, e pensou no seu significado para os séculos vindouros. Mas Pasternak prossegue transmitindo uma sensação indisfarçável do vazio espiritual do regime que dela emergiu. Lenine é a encarnação da vingança e Estaline um calígula bexigoso.
Pasternak tornou-se o primeiro autor soviético desde os anos 20 a contornar a proibição da sua obra na Rússia, publicando-a no estrangeiro. Quando entregou o original do Doutor Jivago a um representante do seu editor italiano, Giangiacomo Feltrinelli, disse-lhe com uma gargalhada melancólica: é convidado por este meio para me ver enfrentar o pelotão de fuzilamento! Pouco depois, agindo segundo instruções oficiais, Pasternak enviou um telegrama a Feltrinelli insistindo em que o seu romance fosse retirado de publicação; particularmente, porém, escreveu uma carta a dizer-lhe que avançasse. Publicado pela primeira vez em italiano em Novembro de 1957, o Doutor Jivago tornou-se campeão de vendas em vinte e quatro línguas. Alguns críticos ocidentais saudaram-no como o maior romance russo desde a Ressurreição de Tolstoi, publicado em 1899. O ultraje oficial em Moscovo por causa do êxito do Doutor Jivago conjugou-se com a atribuição a Pasternak do Prémio Nobel da Literatura de 1958. Num telegrama para a Academia Sueca, Pasternak declarou-se imensamente grato, tocado, orgulhoso, admirado e confuso. O jornal da União dos Escritores Soviéticos, a Literaturnaia Gazeta, porém, denunciou-o como um judas literário que traiu o seu povo por trinta moedas de prata do Prémio Nobel. Sob imensa pressão oficial, Pasternak enviou um telegrama para Estocolmo a retirar a sua aceitação do prémio tendo em vista o significado atribuído a este prémio na sociedade a que pertenço». In Christopher Andrew e Vasili Mitrokhine, o KGB na Europa e no Ocidente, tradução de Freitas Silva, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999/2000, ISBN 972-201-900-7.

Cortesia PDQuixote/JDACT