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Já sem respeito por ele, os camaradas troçaram simplesmente da sua perda de
fibra. Em 24 de Dezembro foi anunciado que Beria tinha sido executado, depois
de julgamento pelo Supremo Tribunal. Uma vez que nem a sua responsabilidade por
assassínios em massa no tempo de Estaline nem a sua própria história como
violador em série de raparigas menores podiam ser mencionadas publicamente, Por
medo de que isso prejudicasse a reputação do Partido Comunista, foi, em vez
disso, declarado culpado de uma conspiração surrealista para fazer renascer o
capitalismo e restaurar o governo da burguesia em conjunto com os serviços de
informação britânico e doutros países ocidentais. Beria tornou-se assim, depois
de Iagoda e Iejov, nos anos 30, o terceiro chefe de segurança soviético a ser
abatido por crimes que incluíam ter sido agente secreto (imaginário) britânico.
Na verdadeira tradição estalinista, os assinantes da Grande Enciclopédia Soviética foram aconselhados a usar uma
pequena faca ou uma lâmina de barbear para retirar a entrada sobre Beria e,
depois, inserir um artigo substituto sobre o mar de Bering. A primeira
declaração oficial de repúdio do estalinismo foi o agora célebre discurso secreto
de Kruschev numa sessão à porta fechada do Vigésimo Congresso do Partido Comunista
da União Soviética (PCUS) em Fevereiro de 1956.
O culto da personalidade de Estaline, declarou Kruschev, foi responsável por
toda uma série de perversões excessivamente sérias e graves dos princípios do
Partido, da democracia do Partido, da legalidade revolucionária. O discurso foi
comunicado à organização do Partido do KGB numa certa secreta do Comité
Central. A secção a que Mitrokhine pertencia levou dois dias a debater o seu
conteúdo. Ele ainda recorda vivamente as conclusões do presidente da secção,
Vladimir Vassilievich Jenikov (mais tarde residente do KGB na Finlândia):
Estaline era um bandido! Alguns membros do Partido ficaram muito chocados ou
foram prudentes e não disseram nada. Outros concordaram com Jenikov. Nenhum
ousou fazer a pergunta que Mitrokhine estava convencido que esteva na mente de
todos: onde estava Kruschev enquanto
estes crimes se davam?
Na
sequência do discurso secreto, Mitrokhine tornou-se demasiado sincero para o seu
bem. Embora as suas críticas à maneira como o KGB tinha sido dirigido fossem
suaves segundo os padrões ocidentais, no fim de 1956 Mitrokhine foi transferido das operações para os arquivos da
PDB onde a sua principal função era responder a perguntas de outros departamentos
e dos KGB provinciais. Mitrokhine descobriu que o arquivo pessoal de Beria
tinha sido destruído por ordem de Kruschev, de modo a não deixar rasto do
material comprometedor que tinha recolhido sobre os seus anteriores colegas. Ivan
Alexandrovich Serov, presidente do KGB de 1954 a 1958, informou devidamente Kruschev
de que os processos continham muito material provocatório e difamatório. Mitrokhine
era um leitor ávido dos escritores russos que tinham caído em desgraça nos
últimos anos do governo de Estaline e começaram a ser publicados outra vez em meados
dos anos 50. O primeiro grande acontecimento literário em Moscovo depois da
morte de Estaline foi a publicação em 1954,
pela primeira vez desde 1945, de novos
poemas de Boris Pasternak, o último grande autor russo a começar a sua carreira
antes da Revolução. Publicado numa revista literária sob o título Poemas do Romance Doutor Jivago,
eram acompanhados de uma breve descrição da obra épica ainda inacabada em que
haviam de aparecer. Porém, o texto completo de Doutor Jivago, que seguiu o caminho serpenteante do seu
enigmático herói da fase final do governo czarista até aos primeiros anos do
regime soviético, foi considerado de longe demasiado subversivo para ser publicado
e foi oficialmente rejeitado em 1956.
No romance, quando Jivago ouviu as notícias da Revolução Bolchevique, ficou
abalado e esmagado pela grandeza do momento, e pensou no seu significado para
os séculos vindouros. Mas Pasternak prossegue transmitindo uma sensação
indisfarçável do vazio espiritual do regime que dela emergiu. Lenine é a encarnação
da vingança e Estaline um calígula bexigoso.
Pasternak
tornou-se o primeiro autor soviético desde os anos 20 a contornar a proibição
da sua obra na Rússia, publicando-a no estrangeiro. Quando entregou o original
do Doutor Jivago a um representante do seu editor italiano, Giangiacomo
Feltrinelli, disse-lhe com uma gargalhada melancólica: é convidado por este meio para me ver enfrentar o pelotão de fuzilamento!
Pouco depois, agindo segundo instruções oficiais, Pasternak enviou um telegrama
a Feltrinelli insistindo em que o seu romance fosse retirado de publicação;
particularmente, porém, escreveu uma carta a dizer-lhe que avançasse. Publicado
pela primeira vez em italiano em Novembro de 1957, o Doutor Jivago
tornou-se campeão de vendas em vinte e quatro línguas. Alguns críticos
ocidentais saudaram-no como o maior romance russo desde a Ressurreição de Tolstoi,
publicado em 1899. O ultraje oficial
em Moscovo por causa do êxito do Doutor
Jivago conjugou-se com a atribuição a Pasternak do Prémio Nobel da
Literatura de 1958. Num
telegrama para a Academia Sueca, Pasternak declarou-se imensamente grato,
tocado, orgulhoso, admirado e confuso. O jornal da União dos Escritores
Soviéticos, a Literaturnaia Gazeta,
porém, denunciou-o como um judas literário que traiu o seu povo por trinta
moedas de prata do Prémio Nobel. Sob imensa pressão oficial, Pasternak enviou
um telegrama para Estocolmo a retirar a sua aceitação do prémio tendo em vista
o significado atribuído a este prémio na sociedade a que pertenço». In
Christopher Andrew e Vasili Mitrokhine, o KGB na Europa e no Ocidente, tradução
de Freitas Silva, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999/2000, ISBN 972-201-900-7.
Cortesia
PDQuixote/JDACT