«Os
reis são homens como os outros; têm desejos, paixões e defeitos, dias de
desânimo, e têm de satisfazer esses desejos e ceder ao império das paixões e seguir
a via errónea dos seus defeitos, mas devemos também lembrar-nos que existe para
eles uma lei moral, mais severa do que para os outros, porque quanto mais elevada
é a posição maior é a influência do exemplo». In Pedro V
O Ser e o Parecer
«Todas as noites ele aparecia no
teatro com a extrema perseverança de um apaixonado. A sala estava sempre cheia,
animada e fremente, bordejada ao longo de todas as varandas laterais por damas que
luziam em elaboradas toaletes e faiscantes
jóias, acompanhadas por cavalheiros trajando irrepreensíveis casacas verdes ou
cor de bronze, coletes de cetim branco bordado a pérolas ou a prata e
escarpins luzentes, de verniz. Eram, na sua maioria, ricos comerciantes,
burocratas da alta administração, plutocratas bafejados pelas vitórias das guerras
liberais, mas também havia membros da antiga nobreza feudal, arruinada e decadente,
que perdera muitos privilégios com a revolução, mas ostentava ainda com orgulho
os anéis do tio inquisidor ou a glória de um parente que fora vice-rei na Índia.
A mocidade dourada, frequentadora
do café Marrare, no centro de Lisboa, marcava presença com as suas alvas
camisas de bretanha, de exuberantes folhos, afogados em volumosas gravatas de três
voltas, ao lado do dandismo espirituoso e subtil dos emigrés e as suas pitadas de rapé sorvidas com regularidade,
ostentando modos elegantes e roupas cosmopolitas, uma consequência do seu exílio
temporário por motivos políticos em países desenvolvidos como Inglaterra ou França.
Todas as noites ele aparecia, estranhamente indiferente ao que se passava na sala
e mesmo até no palco. Era muito jovem, tinha boa aparência e estava elegantemente
vestido, embora com muita sobriedade; por vezes vinha fardado de militar de
alta patente. Uma melena de cabelo louro escuro pendia-lhe sobre a fronte e os seus
olhos de um azul profundo, acinzentado, vagueavam melancólicos, sem se fixarem em
nada nem em ninguém, como se estivesse totalmente entregue aos seus pensamentos.
Ocupava o camarote real, e ao ser
reconhecido pelos presentes, um frémito de frases ciciadas percorria toda a
sala e muitas cabeças se viravam na direcção daquela presença sempre inesperada,
mas paradoxalmente regular. Nesse momento os militares presentes agitavam-se
nas suas fardas com golas bordadas de palmas douradas e botões luzidios, pensando
numa conspiração, e os burgueses enriquecidos de um dia para o outro, ávidos de
títulos de nobreza e honrarias entreolhavam-se desconfiados, interrogando-se se
não estaria em jogo o seu quinhão no governo e altos cargos administrativos, prémio
das suas vitórias nas guerras liberais entre 1820 e 1837. Os polícromos
damascos, musselinas, organdis e cambraias de Nápoles dos vestidos das damas pareciam
ganhar mais cor e as jóias da moda que cintilavam nos decotes quadrados à império
pareciam dardejar chispas, não no terror da perspectiva de uma conjura, mas na avidez
de excitantes novidades e episódios romanescos, que os jornais do dia seguinte comentariam,
e havia-os em profusão e para rodos os gostos, alimentando boatos e maledicências,
criando e destruindo reputações.
A verdade é que, terminado o segundo
acto, e pouco depois do início do terceiro o rei retirava-se. Todas as noites. O
que atrairia ali, com tanta regularidade e persistência a real personagem? Todas
as noites. E novamente, na plateia e camarotes, damascos, musselinas, organdis e
cambraias de Nápoles agitaram-se. Era do conhecimento geral que o jovem monarca
não era um apreciador de teatro». In Maria Lucília F. Meleiro, As Máscaras da
Paixão, Ésquilo, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-983-490-3.
Cortesia de Ésquilo/JDACT