Fernão Lopes, a verdade e a história
«(…) Ana Paula Sousa sublinhou a
urgência da dinastia de Avis em legitimar as suas origens (a bastardia e o
golpe de Estado). Isabel Barros Dias afirmou que, quanto mais próximo se está
dos acontecimentos narrados, mais feroz é a crítica, embora esta se faça de
modo velado, não assumido. Segundo a investigadora, a exaltação dos novos
detentores do poder tornava tentador o aproveitamento a partir de figuras
marcadas como negativas, tais como Fernando e dona Leonor Teles. E o que teve a
dizer Fernão Lopes sobre este assunto? Obviamente ele não escutou os reparos
que sucintamente parafraseámos. Mas no seu Prólogo
à Crónica de D. João I, primeira parte,
respondeu já a algumas das questões suscitadas. Ao escrever as crónicas dos
reis passados e do rei presente, João I, Fernão Lopes afirmou que a sua
intenção não fora escrever um romance ou deturpar os factos históricos, de
acordo com as conveniências afectivas e políticas, como tinham feito alguns
historiadores de Castela e de Portugal que se haviam desviado da direita estrada, e corrido por semideiros escusos. Tão-pouco foi buscar
a eloquência do discurso, pois se outros
per venrura em esta crónica buscam formosura e novidade de palavras e não a
certidão das histórias, desprazer-lhes-á de nosso razoado. O seu objectivo
principal foi apenas contar a verdade, qualquer que esta fosse: nosso desejo foi em esta obra escrever
verdade sem outra mistura, leixando nos bons aquecimentos todo fingido louvor e
nuamente mostrar ao povo quaisquer contrarias cousas da guisa que avieram. Se
errar, foi por ignorância e não por vontade de deturpar a história, visto que mentira em este volume é muito afastada
da nossa vontade.
A Lenda
Era uma vez um rei chamado Ordonho
II, que governava em Leão em 921. Este
rei tinha uma filha, Ximena, que era bela e gentil e que se deixara seduzir por
um fidalgo da corte de seu pai. Algum tempo depois, a bela infanta viu-se abandonada
pelo seu bem-amado. Sentindo-se só e amargurada, Ximena resolveu recolher-se no
lugar de Meneses, em terra de Campos. A sobrevivência obrigou-a a procurar
trabalho na casa de um lavrador abastado e honrado, que se chamava Telo Sanchez.
Este acabou por se comover pelos modos modestos e desamparados que a bela serva
demonstrava ter nas suas lides. A excelência do seu trabalho e a sua intensa
formosura conquistaram o coração do bom lavrador. Acabou por lhe pedir a mão em
casamento e Ximena aceitou de bom grado.
Passado pouco tempo, tinha já o casal
dois filhos gémeos, Ordonho foi caçar para as montanhas e, chegada a noite,
pediu agasalho na casa de Telo, a principal daquele lugar. Ximena reconheceu o ilustre
viajante e, não querendo perder a oportunidade de se dar a reconhecer ao pai, preparou-lhe
um belo repasto. Enquanto isso, resolveu ir buscar o vestido de brocado com que
fugira da corte e um anel de rubi que o pai lhe tinha dado. Do vestido fez duas
vestes para cada um dos seus filhos e o anel deitou-o no prato do pai, onde
serviu um preparado de massa, azeite e ovos, a comida preferida do rei. À hora da
refeição, Ximena mandou os filhos, vestidos com as ditas vestes, servirem o
hóspede. Ordonho, que ainda não tinha suspeitado de nada, surpreendeu-se ao ver
as duas crianças trajadas daquela singular maneira.
Depois, quando provou o manjar,
admirou-se por lhe terem servido o seu prato predilecto. Mas a surpresa maior foi
quando descobriu, no interior da massa, o anel de rubi! Ximena atirou-se então a
seus pés e pediu-lhe perdão pela sua conduta. Ordonho reconciliou-se com a filha
e reconheceu a magnitude do lavrador que casara com Ximena, julgando elevá-la
socialmente. Declarou os filhos do casal como seus netos e nobilitou o
lavrador. A família, unida, feliz e aumentada, partiu para a corte, onde foram celebradas
justas festejando o regresso de Ximena e a sua descendência. Esta é
a lenda que está associada ao lugar de Meneses, onde a família de Leonor Teles teve
raízes. Cruzando esta narrativa com a História, sabemos que Ordonho II nasceu
em 860 e faleceu em 924. Foi rei da Galiza, de 910 a
924, e rei de Leão, entre 914 e924. Casou três vezes, mas só
teve descendência do primeiro consórcio, tendo sido Ximena a terceira dos seus filhos
bastardos. Sucedeu-lhe o seu irmão, Fruela II, que reinou em Leão entre 924 e
925 e nas Astúrias entre 910 e 925. Fruela II foi o duodécimo
avô de dona Leonor Teles». In Isabel Pina Baleiras, Uma Rainha
Inesperada, Leonor Teles, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2013, ISBN 978-989-644-230-9.