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e wikipedia
Bichos
(1940)
«Querido
leitor: são horas de te receber no portaló da minha pequena Arca de Noé. Tens
sido de uma constância tão espontânea e tão pura a visitá-la, que é preciso que
me liberte do medo de parecer ufano da obra, e venha delicadamente
cumprimentar-te uma vez ao menos. Não se pagam gentilezas com descortesias, e
eu sou instintivamente grato e correcto. Este livro teve a boa fortuna de te
agradar, e isso encheu-me sempre de júbilo. Escrevo para ti desde que comecei,
sem te lisonjear, evidentemente, mas também sem ser insensível às tuas
reacções. Fazemos parte do mesmo presente temporal e, quer queiras, quer não,
do mesmo futuro intemporal. Agora, sofremos as vicissitudes que o momento nos
impõe, companheiros na premente realidade quotidiana; mais tarde, seremos o pó
da História, o exemplo promissor ou maldito, o pretérito que se cumpriu bem ou
mal. Se eu hoje me esquecesse das tuas angústias, e tu das minhas, seríamos
ambos traidores a uma solidariedade de berço, umbilical e cósmica; se amanhã
não estivéssemos unidos nos factos fundamentais que a posteridade há-de
considerar, estes anos decorridos ficariam sem qualquer significação, porque
onde está ou tenha estado um homem é preciso que esteja ou tenha estado toda a
humanidade. Ligados assim para a vida e para a morte, bom foi que o acaso te
fizesse gostar destes Bichos. Apostar literariamente no porvir é um belo
jogo, mas é um jogo de quem já se resignou a perder o presente. Ora eu sou teu
irmão, nasci quando tu nasceste, e prefiro chegar ao juízo final contigo ao
lado, na paz de uma fraternidade de raiz, a ter de entrar lá solitário como um
lobo tresmalhado. Ninguém é feliz sozinho, nem mesmo na eternidade. De resto,
um conto que te agradou, tem algumas probabilidades de agradar aos teus netos.
Porque não hão-de eles tirar ninhos quando forem crianças? E, se tal não
acontecer, paciência: ficarei um pouco triste, mas sempre junto de ti, firme,
na consolação simples e honrada de ter sido ao menos homem do meu tempo. És,
pois, dono como eu deste livro, e, ao cumprimentar-te à entrada dele, nem
pretendo sugerir-te que o leias com a luz da imaginação acesa, nem atrair o teu
olhar para a penumbra da sua simbologia. Isso não é comigo, porque nenhuma
árvore explica os seus frutos, embora goste que lhos comam. Saúdo-te apenas
nesta alegria natural, contente por ter construído uma barcaça onde a nossa
condição se encontrou, e onde poderemos um dia, se quiseres, atravessar juntos
o Letes, que é, como sabes, um dos cinco rios do inferno, cujas águas bebem as
sombras, fazendo-as esquecer o passado». Teu Miguel Torga.
Nero
«Sentia-se
cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé. Por isso encostou-a ao chão,
devagar. E assim ficou, estendido e bambo, à espera. Tinha-se despedido já de
todos. Nada mais lhe restava sobre a terra senão morrer calmo e digno, como
outros haviam feito a seu lado. É claro que escusava de sonhar com um enterro
bonito, igual a muitos que vira, dentro dum caixão de galões amarelos,
acompanhado pelo povo em peso… Isso era só para gente, rica ou pobre. Ele teria
apenas uma triste cova no quintal, debaixo da figueira lampa, o cemitério dos
cães e dos gatos da casa. E louvar a Deus apodrecer a dois passos da cozinha! A
burra nem sequer essa sorte tivera. Os seus ossos reluziam ainda na mata da
Pedreira. Chuva, geada, sincelo em cima. Até um lebrão descarado se fora
aninhar debaixo da arcada das costelas, de caçoada! Ah, sim, entre dois males…
Já que não havia melhor, ficar ao menos ali. No tempo dos figos, pela fresca, a
patroa viria consolar a barriga. Gostava de figos, a velhota. E sempre se
sentiria acompanhado uma vez por outra. Não que fizesse grande finca-pé naquela
amizade. Longe disso. A menina dos seus olhos era a morgada, a filha, que o
acariciara como a uma criança. A velha toda a vida o pusera à distância. Dava-lhe
o naco de broa (honra lhe seja), mas borrava a pintura logo a seguir: Ala! E
ele retirava-se cerimoniosamente para o ninho. Só a rapariga o aquecera ao colo
quando pequeno, e, depois, pelos anos fora, o consentira ao lume, enroscado a
seus pés, enquanto a neve, branca e fria, ia cobrindo o telhado. O velho também
o apaparicava de tempos a tempos. Se a vida lhe corria e chegava dos bens de
testa desenrugada, punha-lhe a manápula na cabeça, meigamente, e prometia-lhe a
vinda do patrão novo. Porque o seu verdadeiro senhor era o filho, um doutor,
que morava muito longe. Só aparecia na terra nas férias de Natal. Mas nessa
altura pertencia-lhe inteiramente. Os outros apenas o tratavam, o sustentavam,
para que o menino tivesse cão quando chegasse. Apesar disso, no íntimo,
considerava-se propriedade dos três: da filha, do velho e da velha. Com eles
compartilhara aqueles longos oito anos de existência. Com eles passara
invernos, outonos e primaveras, numa paz de família unida. Também estimava o
outro, o fidalgo da cidade, evidentemente, mas amizades cerimoniosas não se
davam com o seu feitio. Gostava era da voz cristalina da dona nova, da índole
daimosa da patroa velha e da mão calejada do velhote. Tens o teu patrão aí não
tarda, Nero… O nome fora-lhe posto quando chegou. Antes disso, lá onde nascera,
não tinha chamadoiro. Nesse tempo não passava dum pobre lapuz sem apelido,
muito gordo, muito maluco, sempre agarrado à mama da mãe, que lhe lambia o pêlo
e o reconduzia à quentura do ninho, entre os dentes macios, mal o via
afastar-se. Pouco mais. Com dois meses apenas, fez então aquela viagem longa,
angustiosa, nos braços duros dum portador. Mas à chegada teve logo o amigo
acolhimento da patroa nova. Festas no lombo, leite, sopas de café. De tal
maneira, que quase se esqueceu da teta doce onde até ali encontrava a
bem-aventurança, e dos irmãos sôfregos e birrentos». In Miguel Torga, Contos, 1940, Publicações
dom Quixote, editora do Grupo Leya, 2000, ISBN 978-972-204287-1.
Torga,
Régio…, a Literatura, o Conhecimento…, sempre vivem comigo!
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