jdact
O
castelo de São Jorge. Um gigante de vigia à cidade
«(…)
Os vestígios arqueológicos dizem-nos que o período islâmico assistiu ao
renascer da função militar e civil desta área, a alcáçova de Uxbuna, onde estavam
instalados os contingentes militares e o wali
da cidade, o governador. A partir do século XI surge em Lisboa o primeiro castelo
propriamente dito, uma fortificação que funcionava como base militar e incluía
no seu interior a casa do governador, um bairro destinado à elite política e religiosa
de Uxbuna e o último reduto da protecção, mais tarde chamado de Castelo Velho e
hoje conhecido como Castelejo. Aos seus pés estendia-se a medina, preenchida pelas
mesquitas, os souks e as tradicionais
casas de tradição norte-africana, também ela protegida por uma muralha hoje
conhecida como Cerca Moura. A Conquista Cristã de 1147 veio trazer uma nova
vivência e muitas mudanças à cidade cristã de Lixbona. No castelo mudam os protagonistas
e começam a fazer-se alterações. Os soldados muçulmanos são substituídos pelos cristãos,
o wali dá lugar ao alcaide e o rei de
Portugal ali passa a ter a pousada real, ocupando a antiga casa do governador
muçulmano durante as suas estadas em Lisboa. O bairro islâmico da alcáçova mantém-se
em funcionamento mas parte dele é arrasado para dar lugar ao Palácio dos
Bispos, residência do primeiro bispo de Lisboa, Gilberto Hastings.
Esta
nova realidade dá origem a remodelações e reconstruções contínuas, que se prolongam
por séculos e dinastias, já que vários foram os reis que quiseram deixar a sua marca
ao engrandecer o Paço Real da Alcáçova. Afonso III remodela a residência real e
o Palácio dos Bispos, enquanto o rei Dinis não poupa esforços para melhorar as
suas condições e criar um paço verdadeiramente régio com uma capela dedicada a
São Miguel, o arcanjo protector do Reino. O mesmo fizeram Afonso IV e Fernando
I, que mandou instalar o Arquivo Régio na Torre do Haver, onde já funcionava o
Erário Régio, rebatizando-a de Torre do Tombo. Também João I fez grandes alterações
ao paço, adicionando novas dependências e mandando aterrar o fosso do Castelo Velho.
Mas a mudança que mais marcou o castelo e a cidade durante o seu reinado foi a nova
protecção encomendada a São Jorge, evocado pelos exércitos portugueses na
batalha de Aljubarrota e nomeado protector do castelo pela nova dinastia de Avis.
Uma decisão que acabou por ter eco na tradição oral da cidade, já que com o passar
do tempo o Castelo de Lisboa passou a ser chamado de Castelo de São Jorge.
Ao longo
dos séculos e até ser abandonado por Manuel I em prol do novo Paço da Ribeira, o
Paço da Alcáçova foi-se tornando um conjunto enorme e muito heterogéneo, constituído
por vários edifícios construídos em diferentes épocas, de diferentes alturas e estilos,
ao qual foram sendo adicionados a Casa das Rainhas, capelas e algumas instituições
régias. À volta do paço, a alcáçova foi sendo procurada por famílias nobres que
também ali construíram os seus palácios, de forma a ficarem mais perto da
corte. A opinião geral de quem olhava para o paço real nesta altura considerava-o
um feio representante do rei, mas os registos de época contam-nos a história de
um espaço muito rico, recheado do melhor mobiliário, tapeçarias e peças de decoração
da melhor qualidade. A beleza do interior do paço estava à altura dos seus habitantes
e das grandes festas e ocasiões ali celebradas ao longo dos tempos. É no castelo
que João I celebra o casamento da sua filha dona Isabel com o duque da Borgonha
e onde, após a sua morte, o infante Duarte é coroado rei em 1433. Afonso V ali celebra
o nascimento do Príncipe Perfeito, que
anos mais tarde, também no castelo, é coroado João II, em 1481. Apesar de ter acabado
por mudar de casa, Manuel I ainda fez bom uso do seu palácio em eventos relacionados
com importantes episódios da História de Portugal. Em 1499 ali recebe Vasco da
Gama no regresso da primeira viagem marítima à Índia com uma grande cerimónia, e
as suas duas primeiras mulheres ali foram recebidas e tiveram os seus filhos. Aliás,
foi na câmara da rainha Maria de Aragão, que acabara de dar à luz o futuro João
III, que teve lugar a primeira representação de um auto de Gil Vicente. Após a saída
da corte de Manuel I, o local ficou praticamente abandonado e sofreu grandes
danos com o terramoto de 1531. O rei Sebastião, que nunca terá gostado de viver
no paço da Ribeira, reedificou o velho paço e ali viveu durante algum tempo». In
Inês Ribeiro e Raquel Policarpo, Segredos de Lisboa, A Esfera dos Livros,
Lisboa, 2015, ISBN 978-989-626-706-3.
Cortesia
de EdosLivros/JDACT