jdact
«(…)
Ora, foi justamente por essa época, nesses tempos em que os rapazes se esmurravam
por causa da fatal menina, que chegou à Província, e veio aquartelar em São
Paulo, um magnífico regimento de cavalaria, o Primeiro Esquadrão do Corpo de
Dragões, que tinha sede em Vila Rica, nas Minas Gerais. O regimento, formado de
guapos mocetões, equipados vistosamente, atravessou a cidade com galhardia,
marchando e rufando. Foi estacar diante do Convento de São Francisco, onde se
alojou. De cambulhada com esse Corpo viera um bonito rapagão protegido do
Príncipe, tratado pelos superiores com benévolas deferências, moço esbelto e moreno,
vinte e dois anos, gentil e simpático. O moço fazia parte do Estado Maior
daquele regimento. Era o alferes Felício Pinto Coelho Mendonça. Quis assim o destino,
esse endiabrado armador de arapucas, que o oficialzinho de Minas viesse aquartelar
exactamente no Largo de São Francisco, a dois passos da Rua do Ouvidor, e,
portanto, bem rente à flor mais perturbante da Província, a mais perigosa das
desencabeçadoras de rapazes. A graça com que se enfeitou a tentadora moça, as
tafulices com que se alindou para enamorar o recém-chegado, não as sei eu, nem
as quero imaginar. Mas o certo, o que contam crónicas veneráveis, é que logo após
o seu alojamento, ainda mal conhecedor da terra e dos seus usos, já o rapaz andava
tão perdido pela rapariga, fazia por ela tais loucuras, cortejando-a tão às
escâncaras, que o velho João Castro, de sobrolho cerrado, chamou confidencialmente
a mulher e falou-lhe com gravidade: já reparou, Escolástica, nos dengos do
alferes pela menina? Pois aquilo, no pé em que está, é de duas uma: ou o rapaz
presta, e preparam-se os banhos, e a coisa termina já na igreja; ou o rapaz não
presta, e mete-se-lhe uma surra, boa roda de pau, para que suma da Província e
nunca mais se intrometa com pessoas de bem! Eu vou hoje ao quartel tirar
informações. Não há de ser um zé-ninguém, um leguelhé qualquer, que eu vá
deixando entrar, sem mais aquela, na família dos Canto Melo. E dos Toledo
Ribas! exclamou a boa senhora, fazendo valer, com aprumo, as culminâncias do
apelido.
As
coisas que revelou o comandante do batalhão, as excelências que contou do
mineirinho e da sua prosápia, foram de certo abundantes e rasgadas: João Castro
saiu do quartel de sobrolho desfranzido. Dias após, Titília, a pequerrucha,
teve a maior alegria de sua vida. O seu alvoroço foi tanto, foi tão
entontecedora a sua felicidade, que a linda doidivanas, com o seu adorável
estouvamento, saiu pela rua afora, tréfega e borboleteante, a contar de casa em
casa o supremo acontecimento: sabe, prima Angélica, a grande novidade? Fiquei
noiva! Quê? Vai se casar? Nossa Senhora! Aposto que é com o Moraizinho... Pois
não é! Credo! Então será com o sobrinho do Almoxarife? Quê? Não é? Pois então a
maluquinha tem coragem de se casar com o Pedro das serenatas? Qual nada, prima
Angélica! Tudo isso eram patacoadas. Tudo passatempo. Eu vou me casar mas é com
o alferes Felício, aquele moreno, de Minas, que veio no Estado Maior dos
Dragões. Que tal, prima Angélica? E bonito, não é? Pois então dê cá um abraço!
E outro! E mais outro! E até breve, prima Angélica. Pela cidade inteira, num
relâmpago, esparramou-se a notícia do estranho noivado. Foi uma bomba.
13
de Janeiro, no casarão da Rua do Ouvidor, festejou-se enfim, com desmedido
gosto, o casamento da caçula. Festa magnífica! O mais falado acontecimento
social da época. Às três da tarde, sob um sol mormacento, a casa dos Canto Melo,
reluzindo, cheirando a alfazema, esplêndida de enfeites e de galas. O velho
João Castro lá estava com o seu pompeante uniforme de coronel e com as suas
vistosas dragonas de cachos. Escolástica Bonifácia, com o seu pesado vestido de
gorgorão negro, cadeia de ouro e leque de plumas. Esperavam ambos, na sala de
fora, a chegada dos convidados e da parentela. A primeira cadeirinha que surgiu
à porta foi a de Angélica Taques Alvim, da boa prima Angélica, amiga de sempre,
mãe de leite da noiva, que trazia os olhos avermelhados de tanto chorar pela
sua Titília. Depois, o genro da casa, Boaventura Delfim Pereira, o futuro barão
de Sorocaba, padrinho de casamento. Em seguida, com a sua calva espelhante, o
venerando D. José Sá Câmera, compadre e amigo velho, com seus bofes de renda e
os seus calções de ganga amarela. Logo após, ostentoso e solene, corpanzil
atarracado, Eugénio Lócio Seibiltz, Ouvidor da Comarca, letrado e politicão,
honrosa amizade de João Castro.
Quando
o pe. Bernardo Claraval, acompanhado do sacristão, saltou da sege, já o grave
casarão fervilhava de gente. Tudo que havia em São Paulo de prestigioso, tudo
que havia de escolhido e aristocrático, enxameava nas amplas salas de João Castro.
Lá estava o coronel Francisco Inácio Sousa Queirós, barba-piolho, bonita
estampa de dominador, bafejado pelo seu poderio de alto chefe político. O
capitão-mor Eleutério Silva Prado, cabelos brancos, muito respeitado e muito
venerado, com aquele trato ameno, modos chãos, ar acolhedor de velho paulista.
O Nicolau Vergueiro, espadaúdo e amplo, sobrecenho franzido, voz rude, sotaque
áspero de português. O magnífico e louro Francisco Assis Lorena, filho do conde
de Sarzedas, que era o fidalgo de mais proa da Província. A sua aprumada
esposa, Maria Rita Almeida Sousa Faro, cintilante de jóias, porejando
sobranceria e arrogância. O capitão Jaime Silva Teles, fechado e carrancudo, a
olhar para as senhoras de soslaio. Eis que bela liteira, pintada de novo,
estaca de súbito em frente a casa do coronel João Castro. Desce o alferes
Felício. Que noivo galhardo! Veio cintilando nos seus galões dourados. Está
pálido e trémulo. Mas belo e encantador, como um Adonis». In Paulo Setúbal, A marquesa de
Santos, (1925-1935, Wikipedia, Editora Geração Editorial, 2009, ISBN
978-856-150-134-1, 978-858-130-143-3.
Cortesia
de Wikipedia/EGeraçãoE/JDACT