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«(…)
Abriguei-me junto do muro, a tremer. Talvez ele não viesse por ali nesse dia, ou
não ficasse satisfeito quando me visse. Talvez nos tivéssemos desencontrado.
Uma erva aos meus pés vergou-se sob o peso de um pingo de chuva. Finalmente, ouvi
os passos de alguém a chapinhar, e lá vinha Henry com a gola levantada, as
botas enlameadas e uma sacola molhada agarrada ao peito. Henry. Ele parou, olhou
à volta e viu-me debaixo do arco do portão. Trouxe-te um chapéu-de-chuva, disse
eu. E é mais rápido atravessarmos o jardim. Henry não disse uma palavra e, horrorizada,
percebi que ele se esforçava por não chorar. Mas fez uma vénia, pegou no chapéu-de-chuva
e atravessou o jardim atrás de mim, protegendo-nos a ambos. Assim que chegámos a
casa, ele entregou-me a sacola enquanto sacudia o chapéu-de-chuva e o enrolava.
Intimidada pela responsabilidade de ter o seu monte de livros húmidos nas minhas
mãos, cheirei discretamente o couro ensopado. Quando lhos devolvi e ele me
entregou o chapéu, encarou-me e sorriu, e eu fiquei no meio da lavandaria,
entre filas de lençóis molhados, sem saber como conseguiria sobreviver até ao jantar,
quando talvez ele me sorrisse outra vez daquela maneira.
Itália,
1855
Fugi
de Narni pela estrada sinuosa que ia dar ao fundo do vale, onde não soprava sequer
uma brisa e a atmosfera estava impregnada de calor, e um carreiro que atravessava
zonas de mato e hortas desembocava no rio. Ao passar por uma fonte onde havia um
recipiente de metal preso a uma corrente, bebi água antes de continuar a andar.
A roupa apertava-me, eu usava cinco camadas de saiotes e, como deixara a touca no
quarto de Henry, o cabelo caía-me em cascata sobre os ombros. Só de pensar
naquela touca, escolhida com tanto cuidado para esta viagem, fiquei nauseada. Se
conseguisse respirar, teria gritado de dor. A dada altura, as palavras, não,
não irromperam de mim, mas dissiparam-se nas paredes rochosas daquilo que se transformara
numa ravina. Pouco depois, deixei-me cair debaixo de uma árvore, mas mesmo assim
não consegui ficar quieta. Bati no chão com os punhos cerrados e com os
calcanhares. Gritei outra vez não, não e continuei a bater com as mãos até fazer
nódoas negras. Ardiam-me os olhos com as lágrimas que não vertia. Se pudesse sair
do meu próprio corpo, tê-lo-ia feito e deixado a minha pele na margem do rio, como
se fosse um farrapo. Revivi a cena no quarto de Henry: o seu rosto ansioso, o contacto
com a sua pele, os seus beijos, as suas palavras de amor. Não. Não. Não podia ser...
Como era possível que houvesse recebido tanto de mim e depois me traísse? Como era
possível que se sentisse tão inebriado por Rosa que nem sequer reparara que a
mulher que tinha nos braços era eu? Eu. O que não vira eu durante todo este
tempo?
Arranquei
punhados de erva da terra, atirei-os para a água, e lá estava ela do outro lado
do rio com o seu cabelo louro a sua pele clara e as mãos afiladas estendidas para
mim, chamando-me em voz baixa. O seu corpo era flexível e esbelto, o corpete estreito
assentava-lhe bem na cintura e o vestido azul fluía em linhas bem definidas até
aos tornozelos. Mas eu gosto muito de ti, disse eu, dirigindo-me à sombra de Rosa.
Estendi-lhe os braços, suplicando-lhe que viesse e pusesse ordem na situação.
Afinal, talvez Rosa conseguisse andar sobre a água. Apercebi-me de que estava cheia
de terra e de que a bainha da minha saia se arrastava na água, de que me sentia
esfomeada e de que devia recuperar a compostura e regressar a Narni. Mas afastara-me
mais do que julgava e já perdera o fôlego quando me aproximei da fonte. Uma mulher
vestida de escuro encontrava-se sentada junto dela e, mesmo de longe, percebi,
pelo tamanho da touca, que não era outra senão Nora, que me entregou primeiro o
recipiente cheio de água e depois o meu chapéu abandonado. Eu podia tê-la
avisado de que isto não seria fácil, disse ela quando regressámos ao hotel.
O meu
quarto, às três da tarde, estava às escuras e fresco. Nora ordenara às criadas que
me preparassem um banho e observou-me enquanto eu comia. Tinha o cabelo acachapado
pelo calor e pelo peso da touca, mas parecia mais alegre do que nunca desde que
eu a conhecia, havia um ano. Consegui engolir umas garfadas e pus o prato de lado.
O que hei-de fazer?, perguntei. Ele julgou que eu era a Rosa. Ela fitou-me com uns
olhos cor de lama. - Porque havia ele de julgar que eu era a Rosa? Quando o vi,
depois de a menina sair, não me pareceu que ele soubesse o que dizia. Então foi
lá acima? Fomos ambas, quando a menina apareceu a correr daquela maneira. Encontrámo-lo
quase a cair da cama e a delirar. Demos-lhe uma dose e acalmámo-lo. Ele está terrivelmente
doente, pobre homem. Julgou que eu era a Rosa. Isso faz parte do delírio. Mas porque
quereria ele que eu fosse a Rosa? Não se trata de querer. Trata-se do que ele
julgava que estava a ver. Ele queria que eu fosse a Rosa, mas não compreendo
porquê. Não havia nada entre o Henry e a minha prima. Eles nem sequer gostavam um
do outro. Estou noiva do Henry. Ele sempre me pertenceu. Deve ter acontecido alguma
coisa na guerra». In Katharine Mc Mahon, A Rosa de Sebastopol, 2007, tradução de Filomena
Duarte, Casa das Letras, 2010, ISBN 978-972-461-938-5.
Cortesia
de CdasLetras/JDACT