quarta-feira, 7 de setembro de 2016

A Jesuíta de Lisboa. Titus Muller. «Se Antero alguma vez conseguisse apoderar-se daquela bolsa! Com o produto desse roubo poderia viver em descanso para todo o sempre. No entanto, havia algo que no seu interior o impedia…»

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«(…) A costa estendia-se já de um extremo ao outro do horizonte. A meio dessa linha revelava-se a foz do Tejo. A fortificada cidadela de Cascais impunha a sua presença à esquerda, apoiada por outras estruturas defensivas ao longo da costa, concebidas para fazer frente a ataques vindos do Atlântico. A luz da alvorada projectava um brilho avermelhado sobre as muralhas e as torres. A uma distância igual à do alcance da voz passou por eles um paquete, ultrapassando-os, muito embora o próprio Fortune navegasse a uma boa velocidade. Os paquetes eram navios imbatíveis em questões de maneabilidade e velocidade. Era isso que lhes conferia segurança face à ameaça da pirataria. Isso e os seus canhões. Só do lado que estava virado para si, Antero contou doze escotilhas para peças de artilharia. Portanto, o navio dispunha de vinte e quatro canhões no convés de armas, que podiam disparar sobre os costados de navios inimigos. Além disso, viu ainda duas outras peças de artilharia na popa, com as quais se podia atirar sobre eventuais perseguidores. Alguns passageiros acenaram. Ele ergueu a mão em jeito de cumprimento. Reflectira já por diversas vezes acerca dos paquetes. Estabeleciam ligações regulares entre Falmouth e Lisboa. Dantes os comerciantes com representações estabelecidas em Portugal costumavam expedir a sua correspondência para a Grã-Bretanha por meio de diversas cópias entregues a diferentes navios, para garantirem que pelo menos uma delas chegaria sã e salva às mãos do destinatário. Hoje em dia já só se enviava o originai no paquete. Podia-se confiar que este alcançaria a Inglaterra. Um progresso admirável.
Ao navio confiavam os comerciantes não apenas a sua correspondência. Havia a bordo uma bolsa diplomática. Era no interior desta que os comerciantes depositavam pequenos pacotinhos, que continham moedas de ouro, porventura ouro em pó ou até mesmo em barras. O correio ordinário era aberto em Lisboa para efeitos de verificação, pelo que não se revelava seguro. A bolsa diplomática, porém, era entregue a bordo pelo agente da companhia de navegação dona do paquete, que representava em Lisboa o administrador-geral dos Correios de Londres. Ninguém abria essa bolsa. Era como que um viajante inviolável que percorria a distância entre os dois países. Se Antero alguma vez conseguisse apoderar-se daquela bolsa! Com o produto desse roubo poderia viver em descanso para todo o sempre. No entanto, havia algo que no seu interior o impedia de tal coisa. Não era um ladrão. Ficava-se pelo contrabando. Subtraía-se à cobrança de impostos e desrespeitava os acordos comerciais. Esquivava-se, quando muito, ao pagamento das taxas portuárias ou das somas exigidas pelas feitorias. É claro que, indirectamente, estava a roubar dinheiro, ao defraudar cidades e reinos do pagamento dos respectivos impostos. Apenas lhe parecia menos reprovável pelo simples facto de não o fazer a uma única pessoa. Há meio ano, porém, o limiar do aceitável era bem mais exigente. Cada vez lhe era mais fácil imaginar-se a roubar.
Restos daquilo que havia sido a sua crença rumorejavam no seu interior. Decerto que Deus acharia o seu comportamento abominável. Ainda que fosse apenas por desespero que ele pecasse, ainda que o fizesse somente na medida do que a sua situação lho exigia, não deixava de considerar errado o acto de roubar. No fundo, contrabandear nem sequer era coisa que quisesse fazer, vira-se obrigado a isso; se assim não fosse, já há muito que, numa universidade, seria assistente de algum matemático, de um físico ou de um botânico. É assim mesmo que as coisas acontecem, pensou ele, é assim que escorregamos para o fundo do poço e nos tornamos criminosos. Foi nisso mesmo que me transformei. Um criminoso. Navegaram foz adentro. De ambos os lados, avistava-se terras de pastagem. Casas isoladas no meio de ilhas verdes formadas por árvores. Pomares trepavam as encostas. Campos onde se semeava batata-doce eram cavados por escravos, sendo assim preparados para o suave inverno que se avizinhava. A maioria deles tinha a pele de cor negra. Antero voltou a virar-se na direcção do mar. Via velas minúsculas, espalhadas por todo o horizonte. Navios mercantes dos mais diversos países dirigiam-se para Lisboa. Muito embora tivesse há anos deixado a velha pátria, não deixava de sentir orgulho. A capital do Reino de Portugal era uma das maiores cidades da Europa, de importância igual à de Londres, Paris e Nápoles, e no que dizia respeito ao comércio era, sem qualquer dúvida, o lugar mais importante do mundo. Depois de Vasco da Gama descobrir o caminho marítimo para a Índia, tinham os navios, carregados de pimenta, canela, noz-moscada e pérolas, transformado Lisboa na rainha de todas as cidades mercantis. Desde então, ela governava com sageza e benevolência. O seu nome era conhecido em todos os lugares da Terra. Lisboa era rica, a urbe enchera-se até à saciedade com o ouro e as pedras preciosas do Brasil. Nela se realizavam os melhores mercados. Tudo o que o coração ambicionasse poderia ser encontrado em Lisboa». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.

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