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«(…) A
costa estendia-se já de um extremo ao outro do horizonte. A meio dessa linha
revelava-se a foz do Tejo. A fortificada cidadela de Cascais impunha a sua
presença à esquerda, apoiada por outras estruturas defensivas ao longo da
costa, concebidas para fazer frente a ataques vindos do Atlântico. A luz da
alvorada projectava um brilho avermelhado sobre as muralhas e as torres. A uma
distância igual à do alcance da voz passou por eles um paquete,
ultrapassando-os, muito embora o próprio Fortune navegasse a uma boa
velocidade. Os paquetes eram navios imbatíveis em questões de maneabilidade e
velocidade. Era isso que lhes conferia segurança face à ameaça da pirataria.
Isso e os seus canhões. Só do lado que estava virado para si, Antero contou
doze escotilhas para peças de artilharia. Portanto, o navio dispunha de vinte e
quatro canhões no convés de armas, que podiam disparar sobre os costados de
navios inimigos. Além disso, viu ainda duas outras peças de artilharia na popa,
com as quais se podia atirar sobre eventuais perseguidores. Alguns passageiros acenaram.
Ele ergueu a mão em jeito de cumprimento. Reflectira já por diversas vezes acerca
dos paquetes. Estabeleciam ligações regulares entre Falmouth e Lisboa. Dantes os
comerciantes com representações estabelecidas em Portugal costumavam expedir a sua
correspondência para a Grã-Bretanha por meio de diversas cópias entregues a diferentes
navios, para garantirem que pelo menos uma delas chegaria sã e salva às mãos do
destinatário. Hoje em dia já só se enviava o originai no paquete. Podia-se confiar
que este alcançaria a Inglaterra. Um progresso admirável.
Ao navio
confiavam os comerciantes não apenas a sua correspondência. Havia a bordo uma
bolsa diplomática. Era no interior desta que os comerciantes depositavam
pequenos pacotinhos, que continham moedas de ouro, porventura ouro em pó ou até
mesmo em barras. O correio ordinário era aberto em Lisboa para efeitos de verificação,
pelo que não se revelava seguro. A bolsa diplomática, porém, era entregue a bordo
pelo agente da companhia de navegação dona do paquete, que representava em Lisboa
o administrador-geral dos Correios de Londres. Ninguém abria essa bolsa. Era como
que um viajante inviolável que percorria a distância entre os dois países. Se Antero
alguma vez conseguisse apoderar-se daquela bolsa! Com o produto desse roubo
poderia viver em descanso para todo o sempre. No entanto, havia algo que no seu
interior o impedia de tal coisa. Não era um ladrão. Ficava-se pelo contrabando.
Subtraía-se à cobrança de impostos e desrespeitava os acordos comerciais. Esquivava-se,
quando muito, ao pagamento das taxas portuárias ou das somas exigidas pelas
feitorias. É claro que, indirectamente, estava a roubar dinheiro, ao defraudar
cidades e reinos do pagamento dos respectivos impostos. Apenas lhe parecia menos
reprovável pelo simples facto de não o fazer a uma única pessoa. Há meio ano,
porém, o limiar do aceitável era bem mais exigente. Cada vez lhe era mais fácil
imaginar-se a roubar.
Restos
daquilo que havia sido a sua crença rumorejavam no seu interior. Decerto que
Deus acharia o seu comportamento abominável. Ainda que fosse apenas por
desespero que ele pecasse, ainda que o fizesse somente na medida do que a sua
situação lho exigia, não deixava de considerar errado o acto de roubar. No
fundo, contrabandear nem sequer era coisa que quisesse fazer, vira-se obrigado
a isso; se assim não fosse, já há muito que, numa universidade, seria
assistente de algum matemático, de um físico ou de um botânico. É assim mesmo
que as coisas acontecem, pensou ele, é assim que escorregamos para o fundo do
poço e nos tornamos criminosos. Foi nisso mesmo que me transformei. Um
criminoso. Navegaram foz adentro. De ambos os lados, avistava-se terras de
pastagem. Casas isoladas no meio de ilhas verdes formadas por árvores. Pomares
trepavam as encostas. Campos onde se semeava batata-doce eram cavados por
escravos, sendo assim preparados para o suave inverno que se avizinhava. A
maioria deles tinha a pele de cor negra. Antero voltou a virar-se na direcção
do mar. Via velas minúsculas, espalhadas por todo o horizonte. Navios mercantes
dos mais diversos países dirigiam-se para Lisboa. Muito embora tivesse há anos
deixado a velha pátria, não deixava de sentir orgulho. A capital do Reino de
Portugal era uma das maiores cidades da Europa, de importância igual à de
Londres, Paris e Nápoles, e no que dizia respeito ao comércio era, sem qualquer
dúvida, o lugar mais importante do mundo. Depois de Vasco da Gama descobrir o
caminho marítimo para a Índia, tinham os navios, carregados de pimenta, canela,
noz-moscada e pérolas, transformado Lisboa na rainha de todas as cidades
mercantis. Desde então, ela governava com sageza e benevolência. O seu nome era
conhecido em todos os lugares da Terra. Lisboa era rica, a urbe enchera-se até
à saciedade com o ouro e as pedras preciosas do Brasil. Nela se realizavam os
melhores mercados. Tudo o que o coração ambicionasse poderia ser encontrado em
Lisboa». In Titus Muller, A Jesuíta
de Lisboa, 2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das Letras, 2011, ISBN
978-972-462-047-3.
Cortesia
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