quarta-feira, 7 de setembro de 2016

A Obra Prima Desaparecida. Jonathan Harr. «Não encontraram nenhuma menção ao quadro em qualquer outro inventário anterior a 1666. Camillo Pamphili fora um entusiasta coleccionador de obras de arte»

jdact

O inglês
«(…) Com a sua voz sussurrada, a arquivista explicara-lhes o método de organização dos documentos. Os mais antigos remontavam ao século XI. As prateleiras guardavam testemunhos importantes e outros, triviais, da história da família, testamentos, contratos e inventários, documentos relacionados com movimentos bancários, processos judiciais, preparativos de casamentos, aquisição e venda de propriedades e bens. Francesca e Laura pediram para consultar o inventário de 1666, o qual incluía a primeira referência ao S. João da família. A arquivista dirigiu-se sub-repticiamente à sala das traseiras em busca do inventário. Regressou algum tempo depois trazendo nas mãos um enorme volume envolto em couro gasto e debotado. Sentadas à mesa, abriram o livro e debruçaram-se sobre ele, quase encostando as cabeças. O inventário fora elaborado aquando da morte do chefe de família, um tal Camillo Pamphili, de quarenta e quatro anos de idade, que adoecera certo dia do mês de Julho, vindo a falecer no dia seguinte devido a uma febre de origem desconhecida. O notário registara os bens de Camillo num papel de gramagem elevada e de boa qualidade. As margens haviam-se tisnado de castanho com o correr dos anos e o tomo exalava um odor envelhecido a bafio, mas as páginas permaneciam com uma cor creme e imaculadas. Encontraram a referência ao S. João na página 325, no meio de uma listagem onde se encontravam mais de quatrocentos outros quadros, propriedade de Camillo Pamphili. Não restavam dúvidas quanto à descrição: o retrato de um rapaz despido que acaricia um carneiro de lã branca, com manto vermelho na parte inferior e plantas a seus pés. A referência também descrevia uma moldura decorada com um padrão de linhas entrecruzadas e pequenas folhas talhadas, havendo ainda um registo das dimensões do quadro em palmi, uma antiga unidade de medida italiana que equivale a cerca de vinte e dois centímetros.
Não havia referência ao nome do artista, o que era normal. Diversos inventários não mencionavam os nomes dos pintores e escultores, em parte porque os artistas quase nunca assinavam as suas obras. Até à Renascença, eram considerados meros operários especializados, simples artesãos, como sapateiros ou oleiros. E mesmo depois de começarem a ser reconhecidos individualmente e a ascender na estratificação social, depois de Miguel Ângelo, Leonardo e Rafael, a ideia da aposição da assinatura nas obras permanecera inexequível, uma prática que apenas viria a ser adoptada em finais do século XIX. Francesca e Laura começaram a retroceder no tempo, consultando inventários e livros de contas de épocas anteriores, na expectativa de encontrarem uma referência que pudesse revelar a origem do quadro. As visitas ao arquivo tornaram-se uma rotina. Deslocavam-se lá duas ou três vezes por semana, geralmente juntas, depois das aulas na universidade. Era raro encontrarem outros investigadores, apenas a arquivista, que chegava e se afastava num silêncio tal que nunca lhe ouviam os passos. Demoravam horas a consultar todas as páginas de um só inventário. Alguns dos volumes mais antigos tinham resistido bem ao passar do tempo, enquanto outros apresentavam a tinta esbatida sobre as folhas quebradiças. Embrenhavam-se nos documentos, tentando decifrar a caligrafia dos notários e guarda-livros, que era, ao que parecia, invariavelmente minúscula e praticamente ininteligível, com várias entradas em latim e outras em italiano antigo, repletas de abreviaturas e trejeitos ortográficos estranhos.
Não encontraram nenhuma menção ao quadro em qualquer outro inventário anterior a 1666. Alargaram o âmbito da investigação. Camillo Pamphili fora um entusiasta coleccionador de obras de arte. Comprara dezenas de pinturas que eram pertença de cardeais, de membros da pequena nobreza e de outros coleccionadores. Observaram a pente fino livros de contas, recibos e documentos de venda, em busca de alguma indicação que lhes explicasse como Camillo se apoderara do S. João. As pistas que seguiram desembocaram numa complexidade estonteante, repleta de desvios e becos sem saída. Quando sentiam a esperança a esmorecer, relembravam que o quadro não se poderia ter materializado a partir do nada. Tinha um passado... Se ao menos o conseguissem divisar...» In Jonathan Harr, A Obra Prima Desaparecida, 2005, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-233-676-2.

Cortesia de EPresença/JDACT