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O inglês
«(…)
Com a sua voz sussurrada, a arquivista explicara-lhes o método de organização
dos documentos. Os mais antigos remontavam ao século XI. As prateleiras
guardavam testemunhos importantes e outros, triviais, da história da família, testamentos,
contratos e inventários, documentos relacionados com movimentos bancários,
processos judiciais, preparativos de casamentos, aquisição e venda de
propriedades e bens. Francesca e Laura pediram para consultar o inventário de 1666,
o qual incluía a primeira referência ao S. João da família. A arquivista
dirigiu-se sub-repticiamente à sala das traseiras em busca do inventário.
Regressou algum tempo depois trazendo nas mãos um enorme volume envolto em
couro gasto e debotado. Sentadas à mesa, abriram o livro e debruçaram-se sobre
ele, quase encostando as cabeças. O inventário fora elaborado aquando da morte
do chefe de família, um tal Camillo Pamphili, de quarenta e quatro anos de
idade, que adoecera certo dia do mês de Julho, vindo a falecer no dia seguinte
devido a uma febre de origem desconhecida. O notário registara os bens de
Camillo num papel de gramagem elevada e de boa qualidade. As margens haviam-se
tisnado de castanho com o correr dos anos e o tomo exalava um odor envelhecido
a bafio, mas as páginas permaneciam com uma cor creme e imaculadas. Encontraram
a referência ao S. João na página 325, no meio de uma listagem onde se
encontravam mais de quatrocentos outros quadros, propriedade de Camillo
Pamphili. Não restavam dúvidas quanto à descrição: o retrato de um rapaz despido que acaricia um carneiro de lã branca,
com manto vermelho na parte inferior e plantas a seus pés. A referência
também descrevia uma moldura decorada com um padrão de linhas entrecruzadas e pequenas
folhas talhadas, havendo ainda um registo das dimensões do quadro em palmi, uma antiga unidade de medida
italiana que equivale a cerca de vinte e dois centímetros.
Não havia
referência ao nome do artista, o que era normal. Diversos inventários não mencionavam
os nomes dos pintores e escultores, em parte porque os artistas quase nunca assinavam
as suas obras. Até à Renascença, eram considerados meros operários especializados,
simples artesãos, como sapateiros ou oleiros. E mesmo depois de começarem a ser
reconhecidos individualmente e a ascender na estratificação social, depois de Miguel
Ângelo, Leonardo e Rafael, a ideia da aposição da assinatura nas obras permanecera
inexequível, uma prática que apenas viria a ser adoptada em finais do século XIX.
Francesca e Laura começaram a retroceder no tempo, consultando inventários e livros
de contas de épocas anteriores, na expectativa de encontrarem uma referência que
pudesse revelar a origem do quadro. As visitas ao arquivo tornaram-se uma rotina.
Deslocavam-se lá duas ou três vezes por semana, geralmente juntas, depois das aulas
na universidade. Era raro encontrarem outros investigadores, apenas a arquivista,
que chegava e se afastava num silêncio tal que nunca lhe ouviam os passos. Demoravam
horas a consultar todas as páginas de um só inventário. Alguns dos volumes mais
antigos tinham resistido bem ao passar do tempo, enquanto outros apresentavam a
tinta esbatida sobre as folhas quebradiças. Embrenhavam-se nos documentos, tentando
decifrar a caligrafia dos notários e guarda-livros, que era, ao que parecia, invariavelmente
minúscula e praticamente ininteligível, com várias entradas em latim e outras em
italiano antigo, repletas de abreviaturas e trejeitos ortográficos estranhos.
Não encontraram
nenhuma menção ao quadro em qualquer outro inventário anterior a 1666. Alargaram
o âmbito da investigação. Camillo Pamphili fora um entusiasta coleccionador de obras
de arte. Comprara dezenas de pinturas que eram pertença de cardeais, de membros
da pequena nobreza e de outros coleccionadores. Observaram a pente fino livros de
contas, recibos e documentos de venda, em busca de alguma indicação que lhes explicasse
como Camillo se apoderara do S. João. As pistas que seguiram desembocaram numa complexidade
estonteante, repleta de desvios e becos sem saída. Quando sentiam a esperança a
esmorecer, relembravam que o quadro não se poderia ter materializado a partir do
nada. Tinha um passado... Se ao menos o conseguissem divisar...» In
Jonathan Harr, A Obra Prima Desaparecida, 2005, Editorial Presença, Lisboa,
2006, ISBN 978-972-233-676-2.
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