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«(…) Belém
surgiu à vista. A igreja e o mosteiro dos monges Jerónimos destacavam-se na sua
brancura diante do azul céu matinal. Na margem do rio, a Torre de Belém
enfrentava as vagas. A torre defensiva, com quatro andares, encontrava-se
completamente cercada de água. Com os seus canhões dominava o acesso marítimo a
Lisboa. Navio algum conseguiria passar diante dela, uma vez que os guardas
daquela fortificação recebessem ordens para o afundar. Soprava uma brisa
quente, vinda de terra. Transportava o odor da batata-doce e da terra. Gaivotas
vinham juntar-se ao Fortune. Acompanhavam-no, lançando os seus
chamamentos de modo bem audível, e revoluteavam em torno dos seus mastros. O
dia estava bom, prometia uma chegada aprazível e lucrativa. Tudo estava a
correr como planeado: tinham conseguido trazer para bordo o contrabando sem que
os guardas portuários ingleses disso se tivessem apercebido. E em Lisboa tinha Antero
os seus parceiros de negócios. Trataria de conseguir que as caixas fossem
descarregadas durante a noite, sem dar nas vistas. O Fortune ia passando
ao largo de diversas colinas. Para lá da proa podia já avistar-se uma autêntica
floresta de mastros e velame. Por detrás, revelava-se Lisboa. As instalações
portuárias de Alcântara ocupavam uma vasta área. Havia ali centenas de navios
ancorados. Sobre as colinas erguiam-se, rumo ao céu e até perder de vista,
palácios, residências e igrejas. Havia nos Portugueses um pouco de todos os
povos, de Celtas, Fenícios, Gregos, Romanos, Germanos e Mouros. Era isso que
fazia de Lisboa uma grande cidade. Os seus costumes, a sua língua, desenvolvida
na base do latim vulgar, que as tropas de ocupação romanas haviam falado.
Possuía, no entanto, também muitas palavras de origem árabe. O vigor de vários
povos concentrara-se neste lugar e transformara Lisboa numa metrópole. Mais de
trinta mil casas cobriam as colinas. Roupa lavada de diversas cores estava
pendurada a secar em estendais de ferro, diante das janelas, já que o espaço
nos pátios e no interior das casas não chegava para tal. Algumas delas chegavam
a erguer-se a uma altura de seis andares. As muralhas em redor de Lisboa
contavam com setenta e sete torres de vigia. No cimo de uma das colinas, qual
trono, erguia-se o castelo, construído à maneira dos Mouros.
Cheirava
penetrantemente a alcatrão vegetal e a piche. Durante um momento, Antero
susteve a respiração. Estavam a calafetar um navio ali perto. O piche aquecido
até soltava vapor. Era grande o perigo de incêndio aquando da realização destes
trabalhos, pelo que a calafetagem era efectuada diante do porto, com os navios
fundeados. Uma vasta escadaria branca orlava o palácio real e descia até à
margem do rio, para lá desta havia fileiras de árvores e fontes decorativas.
Lisboa, a capital do Reino de Portugal, resplandecia em toda a sua riqueza. Passaram
a marcação. Em todos os portos existia uma marcação que os navios não deveriam
ultrapassar caso não pretendessem carregar ou descarregar mercadorias. Quem não
transpusesse essa bóia poderia abandonar o porto sem ficar obrigado ao
pagamento das taxas portuárias. No entanto, uma vez passada a bóia, já não
havia como voltar atrás. O comandante Wrightson chegou-se junto dele. Trazia
vestido o seu melhor jaquetão azul. Os botões de latão reluziam. O seu rosto,
porém, apresentava-se empalidecido. Tire duma vez a mercadoria da cabeça!,
pronunciou Antero em voz baixa. Não pense mais nisso. Você tem de projectar um
ar confiante. Não me devia ter metido nisto, o comandante percorreu as suíças
com a palma da mão bem aberta. Toda a minha vida fui um homem honrado, ouviu?
Que bicho me terá mordido para me pôr agora a fazer uma coisa destas? O
comandante falava como se sentisse medo, no entanto os seus olhos mantinham-se
frios. Antero sentiu uma contração na barriga que interpretou como um aviso.
Havia ali algo que não batia certo. O comandante estava a tentar iludi-lo. Não
precisa de tentar enganar-me, comandante. Você já antes fez contrabando. Não é
verdade? É a minha primeira vez. Nunca antes me tinha metido nisto. Só que
sinto saudades da minha filha. Quero ir ter com ela à Luisiana. Não posso
esperar mais tempo. Luisiana?
Mas isso
era uma colónia francesa. O mapa pendurado na cabina do comandante era dos
territórios ultramarinos britânicos. Era mentira o que ele ali estava a contar!
Quereria ele prejudicá-lo? Pretenderia roubar-lhe a mercadoria? Se assim fosse,
poderia ter retalhado a garganta de Antero quando ainda estavam em alto mar,
lançando-o de seguida borda fora. Para se conseguir ver livre da mercadoria,
precisava dos contactos que ele, Antero, possuía em Lisboa. Não podia
simplesmente descartá-lo do negócio. Antero fitou o comandante minuciosamente.
Não deixaria de tê-lo debaixo de olho até que a mercadoria fosse descarregada
do navio.
As rodas
da carruagem, revestidas com uma chapa de ferro, aproximaram-se dela. Dalila
encostou-se completamente à parede. Por um triz não foi atropelada. Porque não
prestava ela atenção? Estava sempre com ele na ideia. Afastou-se do muro e
continuou a descer até à Rua Nova dos Mercadores. Numa travessa viu um rapaz a
fazer o pino e andar de pernas para o ar, enquanto ia sendo incitado pelos seus
amigos. Consigo até ali à frente. Vejam bem!, exclamava ele, já com a cara toda
vermelha. Frente à entrada da próxima casa, diante da qual Dalila passou,
estava sentada uma anciã, que ia desfazendo pão em pedaços para uma tigela de
leite. Pousou-a no chão. O seu gato, já velho e com o pelo desgrenhado,
chegou-se junto dela para vir comer. Uma menina acocorou-se e, cheia de
curiosidade, ficou a ver o gato a comer. Que idade tem ele? Dalila estacou.
Ficou fascinada pelo acto de contemplação da menina, que tinha um rosto sujo e
pequenino, os olhos castanhos, grandes como nozes. Os seus dedos desenhavam
círculos na areia enquanto observava o gato. Tem dezoito anos, respondeu-lhe a
anciã. Porque lhe dás pão? Ele já não consegue apanhar pássaros». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa,
2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.
Cortesia
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