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Guimarães.
Maio de 1112
«A
respirar às golfadas, Afonso especou na soleira da porta que dava acesso à
torre de menagem. As suas três irmãs e as aias desfaziam-se em grande pranto.
Lacaios oravam pelos cantos mal iluminados, alguns estendiam os braços ao alto,
numa atitude de súplica. Apesar de a noite ter caído, havia poucas velas
acesas. Os olhos castanhos do pequeno buscaram sua mãe e descobriram-na
proseando com Ermígio Moniz Ribadouro. Parecia inquieta, embora não pranteasse
como as outras mulheres. A bem da verdade, Afonso não imaginava sua mãe a
chorar. O pequeno engoliu em seco, perante a ameaça que pairava no ar abafado,
despoletada com a vinda dos irmãos Ermígio e Egas Moniz. Sua irmã Sancha
estranhara: porque não volveu o senhor nosso pai com eles? A chuva grossa começara
a cair durante a tarde no pó seco do terreiro. Afonso convencera a irmã a
procurar abrigo nos estábulos, onde podiam brincar com a ninhada da Catita,
uma das perdigueiras do castelo. Os cachorrinhos vieram ao seu encontro numa
alegria de crianças a quem se distribui doces e, depois de se certificar de que
as crias não corriam perigo, a perdigueira deitou-se no seu canto. Afonso e
Sancha nem se apercebiam que a borrasca aumentava de intensidade. Até que a Catita
deu um salto, num ladrar ameaçador. Os cachorros assustados aconchegaram-se
no ninho quente deixado pela mãe, quando os dois cavaleiros irromperam no
estábulo, embrulhados em mantos encharcados, as montadas a resfolegarem de
cansaço e de susto. Sossega, Catita, disse um deles à perdigueira
alarmada, que lhes examinava as vestes. A cadela acabou por se deixar afagar na
cabeça. E Afonso reconheceu os irmãos de Ribadouro: Ermígio Moniz, senhor das
terras de Faria e de Santo Estêvão de Ribalima, e Egas Moniz, a quem pertenciam
as terras de São Martinho, Neiva e Lamego.
Ao
depararem com as crianças, os senhores lançaram-lhes um olhar alarmado. Afonso
teve a sensação de que Egas Moniz lhes ia a dirigir a palavra, quando o irmão
Ermígio proferiu: apressemo-nos a ir ter com dona Teresa! E há que mandar
alguém tratar das cavalgaduras. Deixaram o estábulo. A voz de Sancha exprimiu o
receio que igualmente se apoderava de Afonso: porque não volveu o senhor nosso
pai com eles? O pequeno remeteu-se ao silêncio. A irmã considerou: é tempo de
volvermos à torre... Não. Eu fico aqui. E não receias a fúria da senhora nossa
mãe? Afonso abanou a cabeça, numa negativa muda, mas decidida. Sancha deixou-o
sozinho. Os cachorrinhos dormitavam agora ensarilhados uns nos outros. Afonso
sentou-se ao lado deles, sobre a palha, permanecendo imóvel. Nem o moço que
veio tratar das montadas deu pelo filho de dona Teresa, naquele canto escuro. Em
breve, todo o estábulo escurecia e o pequeno resolveu-se, enfim, a chegar-se à
porta. Observou o chicotear da chuva. De repente, desatou a correr pelo terreiro
fora, a chapinhar na lama, até chegar à escada de madeira, que dava acesso ao
primeiro andar da torre de menagem. Não era fácil para uma criança de quatro
anos vencer os degraus. A sua ama-de-leite foi a primeira a dar com ele,
especado à entrada, a pingar dos cabelos e das vestes. A mulher desatou numa
ladainha: que desgraça, meu rico menino, que desgraça! Nossa Senhora nos valha!
Agarrando-lhe nos braços, encarou-o com os olhos rasos de lágrimas: deixou-nos
um herdeiro tão pequenino, o nosso bondoso senhor. Apertou-o contra o peito e
soluçou-lhe aos ouvidos: que será de nós, meu Deus? Afonso sufocava, quando
ouviu a voz de Egas Moniz de Ribadouro: ah, aqui estás! O fidalgo agarrou-o
pela mão e afastou-o da ama, cujo choro perto do seu ouvido lhe provocara
tonturas. E um nó crescia-lhe na garganta. Egas Moniz levou-o para a
reentrância da janela, sentaram-se nos assentos de pedra e o homem começou: com
certeza sabes que a tua tia Urraca confiou o governo das cidades de Astorga e
Zamora a teu pai… Embora não compreendesse o que Egas lhe dizia, Afonso acenou
entendimento com a cabeça. Agastado, el-rei Afonso de Aragão veio pôr cerco a
Astorga, ao saber que nós lá nos encontrávamos... Dona Teresa deseja falar-vos,
senhor. Afonso estremeceu, não se apercebera da aproximação do lacaio, que
fungou ruidosamente para um lenço e se pôs, depois, a limpar as lágrimas. Egas Moniz
ainda hesitou, mas acabou por dizer ao pequeno: aguarda aqui por mim! Afonso
tentava, em vão, engolir o nó que se lhe havia formado na garganta. A chuva
fustigava contra a portada de madeira da pequena janela sem vidros. O vento
assobiava por entre as frinchas, o pequeno sentia-o soprar contra a sua túnica
encharcada. Mas não tinha frio. Mal conseguia respirar, na atmosfera abafada,
atacado por suores. Um trovão retumbou mais forte. O pequeno saltou para o
chão, desatou a correr porta fora e só parou no estábulo, de respiração
ofegante. O coração parecia querer escapar-se-lhe pelas orelhas e o cabelo
pingava-lhe pelo rosto abaixo. O enjoo que subia por ele acima lembrou-lhe a
noite que passara a vomitar, depois dos festejos da Páscoa, que se seguiam à
longa abstinência da Quaresma e o levaram a devorar mais doces do que os que
podia comportar. Deixou-se cair em cima da palha, ao lado da Catita, que
aconchegava as suas crias». In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O
Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
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