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Odeio-os, a esses conselheiros bondosos e às suas teorias do positivo e à auréola
de tolerância que lhes envolve a garganta quando me incitam a que desabafe, que
desabafar faz bem. Querem que além de cega seja santa, eruditamente santa,
socialmente santa, que me porte bem, que aceite o carinho empenado pela piedade
que têm para me oferecer. Podem chamar-lhe compaixão, socorrer-se da raiz
etimológica de paixão partilhada, odeio-os. Pelo menos sou uma ceguinha má,
dura de roer, imune às maviosas vozes da resignação. Preferia não ser este
ouvido em que me transformei, Sebastião, preferia continuar a ser uma
observadora. Gostava de olhar para as pessoas, às vezes até as seguia, ao
acaso, só para as ver viver. Adestravam-me a benevolência, esses passeios,
imaginava-me um anjo ocasional, puramente inútil, irmã dos anjos de As Asas do
Desejo de Wim Wenders, que acompanhavam as pessoas como se andassem numa escola
nocturna, a aprender só por aprender, despidos de ambições. Andava muito a pé,
comprometida apenas com esse prazer da realidade inesperada. Mas espera,
Sebastião, alguém, perto de nós, fala do padre António Vieira.
Dizes-me
que vês uma excursão, um pouco à nossa frente, com uma etiqueta comum: o
encontro do padre António Vieira. Cerca de trinta pessoas. Mais mulheres do que
homens. E que o pretexto da viagem é o itinerário brasileiro do padre António
Vieira. Digo-te que Vieira nunca é um pretexto, é sempre uma chamada. Digo-te
que Vieira nos chama, pensarás que enlouqueci de vez e talvez estejas certo,
pouco me importa. Peço-te que me conduzas ao responsável do grupo, hesitas, mas
a uma cega nada se recusa, é esse o reverso da piedade, o inebriante poder que
a piedade dos outros nos confere. Como hesitas ainda, Sebastião? Talvez tenha
sobrestimado a tua piedade por mim. Esporo-te: o problema da tua vida não era o
tédio? Então vá; mexe-te, que eu ajudo-te a acabar com ele. Depressa. Dizes que
sou maluca. E perversa. Posso ser essa tua fantasia e tudo o que tu quiseres,
desde que me faças a vontade, Sebastião. Preocupa-te que percamos o lugar, não
percebes que eu já saí da fila, Sebastião, já não vejo as filas, e se me
quiseres seguir acabarás por te perder também, Sebastião, creio que é mesmo
esse desejo inconfessado de saltar para fora da fila o que te atrai em mim,
precisas da minha mão de cega para isso, sozinho não tens coragem, olhas para o
lado e vês o abismo. Mas não perderás o teu lugarzinho agora, Sebastião, as
tuas malas cheias de camisas de algodão puro, impecavelmente dobradas, os teus
guias turísticos, não te perderás neste instante, Sebastião, põe-me só à frente
do responsável, deixa-me falar, tornei-me boa com as palavras, o buraco dos meus
olhos é um rastilho de eloquência, comovo as pessoas mesmo antes de falar,
extraordinário dom o meu, não te parece, Sebastião? (Avanço pela noite
tacteando palavras. Lavrando antros. As esquinas do mundo concreto
tornaram-se-me abstractas. Os passos contados. O assinalar dos ruídos. Uso as
palavras como semáforos. Palaluzes. Palalavras. Palalantros. A voz de um homem
acelerando a fúria dos anjos barrocos, abrindo-lhes fissuras nas barrigas,
revelando o pó de que são feitos. A voz de um homem despedaçando o chicote dos
homens que escravizam outros homens, vértebra a vértebra. A voz de um homem
desbravando a fé nas palavras, fazendo de cada palavra uma catapulta, um forno,
um berço, um gesto de reconstrução do mundo. Um céu partido ao meio no meio da
tarde, um céu despenhado, pedra a pedra, da voz deste homem).
A
Primeira pedra da funda de David atirada (ó Roma) à cabeça do Gigante, diz o
nosso Purpurado Intérprete, que é o conhecimento de si mesmo. Cognitio sui.
Grande pedra, e com razão a primeira; porque neste mundo racional do homem, o
primeiro móbil de todas as nossas acções é o conhecimento de nós mesmos. As
obras são todas dos pensamentos; no pensamento se concebem, do pensamento
nascem, com o pensamento se criam, se aumentam e se aperfeiçoam: e como os
filhos recebem dos pais a natureza, o sangue e o apelido; assim se recebe do
pensamento todo o bem grande e louvável, que resplandece nas obras. Daqui é,
que querendo louvar David as obras maravilhosas de Deus, fez o panegírico aos
seus pensamentos: multa fecisti tu Domine Deus meus mirabilia tua, et
cogitationibus tuis non est que similis sit tibi. Sendo pois os pensamentos,
e conceitos na mente do homem tantos, e tão diversos, justamente se pode
duvidar de qual, ou quais dele sejam filhos as obras. Todos comumente cuidam,
que as obras são filhas do pensamento ou ideias, com que se concebem as mesmas
obras: eu digo que são filhas do pensamento e da ideia com que cada um se
concebe, e conhece a si mesmo. A primeira coisa e a maior que jamais se obrou,
não no mundo, senão antes do mundo, foi a geração eterna do Verbo: e como foi,
não feita, mas produzida, uma obra tão grande, tão imensa, tão portentosa e
incompreensível? Não de outra maneira que do conhecimento de si mesmo». In
Inês Pedrosa, A Eternidade e o Desejo, Publicações dom Quixote, 2007, ISBN
978-972-203-495-1.
Cortesia de
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