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Porque só em 1434 foi passado o cabo Bojador?
«(…) O infante Henrique, que dispunha das rendas da Ordem de Cristo, de
que era administrador, foi esse homem. Durante mais de uma década, enviou os
seus homens para irem além do Bojador, sem sucesso, até que Gil Eanes acedeu
finalmente, em 1434, tendo sido generosamente recompensado após o seu regresso.
Não parece ter encontrado grandes dificuldades, no fim de contas. O cronista Zurara
registou o que fora, afinal, um bluff:
e já seja que o feito, quanto à obra, fosse pequeno, só pelo atrevimento foi
contado por grande. E que contou Gil Eanes? Muito pouco: não vira gente nem nada
de especial interesse, limitando-se a trazer uns arbustos que colhera na terra
para, de alguma forma, provar que lá estivera. De tal modo foi decepcionante e,
talvez, duvidoso o seu relato, que o infante o mandou de imediato repetir a
viagem, desta vez acompanhado com alguém de sua inteira confiança. Desta
segunda viagem resultou uma novidade: viram pegadas humanas e rasto de camelos.
Porque estava o infante Henrique tão interessado, afinal, em vencer aquela
barreira? São célebres as cinco razões que Zurara expõe na sua Crónica
da Conquista de Guiné. Há motivações práticas (comércio, conhecimento da
extensão do mundo muçulmano) e ideológicas (procura de aliados cristãos,
salvação das almas), mas também simples curiosidade. Para um qualquer
marinheiro, essa curiosidade era inconsequente, mas para o infante, não: era
uma curiosidade, digamos, geopolítica.
A conquista de Ceuta fora um sucesso, mas importava prosseguir a guerra.
E enquanto não havia condições para fazê-lo, afinal, Ceuta, fora cercada logo
em 1419 e os custos da sua manutenção esvaziavam os cofres do Estado, o infante
Henrique não ficava de braços cruzados à espera que surgisse uma nova
oportunidade para retomar a acção militar. Nesse entretanto, havia todo um
trabalho árduo e moroso a fazer: fortalecer a presença portuguesa no Estreito e
garantir a segurança da navegação face aos corsários mouriscos, prosseguir a
guerra no mar enquanto não era possível retomá-la no terreno, promovendo o
corso e o assalto à navegação inimiga, e finalmente, porque não, explorar e conhecer
os limites do poderio adversário, precisamente numa região mal conhecida e que
não despertara interesse: a costa atlântica.
Não foi, assim, por acaso que a primeira tentativa de ocupação das
Canárias tenha ocorrido pouco depois do início das viagens destinadas a passar
o Bojador, em 1421. A chegada à Madeira (cuja existência era, provavelmente, já
conhecida) ocorreu também nesta conjuntura. Portugal, pela mão de um membro da
família real, e não da Coroa, como por vezes se subentende, ganhava deste modo um
renovado interesse pela faceta atlântica de Marrocos, onde não havia jurisdição
tácita de Castela de que se trataria de terras de sua conquista, como acontecia
em Granada ou nas paragens marroquinas a leste de Ceuta. Neste contexto, ganha
especial relevo uma das cinco razões, apontadas por Zurara: a que
menciona o interesse do infante Henrique em saber até onde se estendia o mundo
islâmico. Talvez fosse possível, deste modo, contornar Marrocos pelo sul e,
quem sabe, encontrar gente cristã, ou, pelo menos, não-muçulmana, que pudesse
servir de apoio e aliança estratégica comum.
As tentativas para passar o Bojador tiveram, assim, tudo que ver com o
que estava em jogo na altura: o regresso à guerra e a retomada da (re)conquista
do norte de África. A viagem de Gil Eanes, que hoje se aceita unanimemente ter
quebrado o isolamento milenar da Europa e inaugurado uma nova era, por pouco
que não ficou no esquecimento. Três anos depois, como afirma Zurara, passou o
nobre infante Henrique em Tânger, por cuja razão não enviou mais navios contra
aquela terra». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália?
Porque foi Conquistada Ceuta? O arranque dos Descobrimentos, A Esfera dos
Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.
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