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O Contexto
A instalação do Tribunal do Santo Ofício
«(…) É verdade que já
existe uma Inquisição Romana, dependente dos papas, que funciona ao longo de
toda a Idade Média. Os bispos, detentores da autoridade eclesiástica, agem como
guardiões da fé nas suas dioceses, procedem a Inquirições e dão julgamento aos
delitos contra a religião. Mas o projecto de Manuel I é de outra natureza e tem
outro alcance. O monarca Manuel I, ao pedir que o papa delegue em si competências
que até então tinham sido do exclusivo foro eclesiástico e ao pedir para
intervir em domínios que lhe eram teoricamente alheios, visava reforçar o seu poder
em detrimento do poder papal, só assim se explicando que o papa resista o mais
que pode. Em 1525, durante as Cortes de Torres Novas, reemergem as queixas e os
protestos contra os cristãos-novos, apontando-os como responsáveis pela escassez
de cereais e pela carestia e especulação daí resultantes. Volta também a já
antiga acusação segundo a qual médicos e farmacêuticos cristãos-novos matavam deliberadamente
os seus doentes cristãos-velhos, pelo que é pedido que lhes seja vedado o acesso
a essas profissões e requerida a indagação da pureza de sangue. Pela mesma
altura, dá-se o recrudescimento do Messianismo entre os conversos. A figura de
David Rubeni, visionário que anuncia a chegada do tão esperado Messias, inflama
os corações nas comunidades cristãs-novas, fazendo-lhes estalar por vezes o
verniz de cristão fresco ao preludiar a vinda próxima do Messias e a renovação
do reino de Judá. Em 1525, João III formula novo pedido de instalação da
Inquisição (maldita) em Portugal,
encetando-se assim um longo processo de negociações diplomáticas, entre
Portugal e a Santa Sé. O desenrolar deste processo constitui uma morosa e complexa
dança, na qual o monarca português e o papa vão valsando, mas não sozinhos. A
cada compasso, temos por certo que delegações das comunidades cristãs-novas se
movem junto da Santa Sé, com o intuito de lograr os objectivos da Coroa
portuguesa.
O resultado deste
processo, diz Bethencourt, não pode ser compreendido apenas através da análise
da relação de forças estabelecidas entre os agentes régios e agentes dos
cristãos-novos em Roma. Acerca das razões do monarca, Francisco Bethencourt
afirma: a motivação mais profunda do rei dizia respeito à extensão da sua
jurisdição numa área sensível, tradicionalmente controlada pelo papa. (…) Sem
menosprezar as causas específicas, religiosas, sociais, do pedido de
estabelecimento da Inquisição (maldita), decorrentes
de pulsões arcaicas de tipo étnico, não podemos deixar de sublinhar que o
pedido se insere numa estratégia de naturalização e estatização da Igreja, caracterizada
pela intervenção crescente do poder régio na organização da hierarquia
eclesiástica. Fazendo a análise na óptica da Igreja católica, Bethencourt
aponta o contexto internacional como factor determinante. De um lado, no campo
religioso, assiste-se ao movimento da Reforma protestante e à contra-reacção
adoptada pela Igreja católica. Bethencourt fala-nos de um debate religioso que
se estende pela Europa, em que o diálogo vai agonizando até fracassar definitivamente
em 1541, durante a Conferencia de Ratisbona, e em 1545-1563, perante as
determinações intransigentes de Roma resultantes do Concílio de Trento.
De outro lado, no campo
geopolítico, (estando este aspecto intimamente associado ao anterior), assiste-se
a uma alteração no que toca às relações de forças estabelecidas de longa data
entre os estados europeus e a cúria romana. A própria Reforma, intensificada
entre 1520 e 1540, vai minar o ascendente que a Igreja detinha diante do poder
político. A afirmação da autonomia espiritual, desenvolvimento da
política territorial e autoridade legitimadora dos soberanos, constituem
prerrogativas que progressivamente perdem força. É perante a precariedade da
posição do papa em relação à ruptura política e religiosa de uma parte da
Europa Central e do Norte, que surgem as exigências do monarca português. Este,
filho dilecto da cúria romana desde longa data, é um aliado constante e sólido
e lidera um movimento expansionista que abre desde cedo grandes expectativas de
missionação em novos continentes, alargando, por essa via, a influência da
Igreja. A resposta chega sob a forma de três diplomas da cúria papal: em 1531,
a bula Cum ad nihil magis;
em 1536, o texto em que o papa estabelece em Portugal o tribunal do Santo
Ofício da Inquisição (maldito), nomeia
como primeiros inquisidores os Bispos de Coimbra, Lamego e Ceuta, a quem se
juntaria um quarto inquisidor nomeado pelo monarca; e, em 1547, o documento que
conclui o edifício jurídico iniciado anteriormente. Estava por fim em
exercício, sem restrições, a fábrica destinada a depurar de heresias a nação
contaminada». In Raquel Patriarca, Um
Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal,
1536-1650 Dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, Porto, 2002.
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