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Sou Ary, o escriba, mas deixei de o ser. Tinha abandonado tudo e deixara de procurar
a sabedoria. Endossara as roupas citadinas e era como vós. Já não conhecia os tormentos
e os transes, os pavores daquele que busca Deus. Deus! Como estava longe da religião
que invadira as menores fibras do meu ser! Trazia os Essénios na pele, as
letras gravadas no meu rosto, o nome de Deus tatuado no meu coração. Era Ary, o
Messias, mas deixara tudo para trás, até a minha própria essência deixara longe
de mim, e sentia-me leve, tão leve... De tanto estudar as letras, tornara-me uma
letra, o Vau. O Vau conversivo, aquele que faz do futuro um passado e do
passado um futuro. Renegara a religião, tornara-me praticante da apostasia e posso
dizer-vos que comia o que se me apresentava. Caminhava livre e satisfeito, finalmente
anónimo, sem o peso terrível do eleito, sem esse privilégio que é um fardo. E dizia
para comigo: a mim, o mundo, a mim, a vida! E escrevi: a mim, o amor. Tenho um utensílio
pontiagudo e, com a tinta, desenho as colunas e as linhas. Escrevo com a pluma e
a resina, utilizo óleo e água, concluo o meu trabalho em pequenas peças de
couro; as letras abordam as linhas como dançarinas microscópicas, valsando em conjunto,
ligando-se e dobrando-se uma e outra vez, curvando-se em grandes arabescos para
vos saudar, para vos desejar as boas-vindas, para vos levar para algum lado,
para longe, neste mundo, e para vos revelar o seu mistério, assim seja. Na tua
boca pus as palavras, na palma da minha mão te acolhi.
Na falésia
existem grutas, umas feitas pela mão do homem, outras naturais. Nas escavações que
aí se efectuaram, em 1947, foram encontrados rolos e fragmentos que representam
documentos judeus essenciais, dezenas de milhar de fragmentos, uma verdadeira
livraria que data do tempo de Jesus, a maior descoberta arqueológica do século XX.
Os manuscritos encontrados nesse ano estavam habilmente conservados em jarros,
envoltos em panos, ao abrigo da humidade. Os Essénios escreveram esses rolos: é
uma seita judia, oriunda dos sacerdotes do Templo, que se retirara para o Mar
Morto esperando pelo fim dos tempos, purificando-se, banhando-se na água pura e
clara para se prepararem para o seu advento. Quando chegasse esse tempo, os
maus seriam destruídos e os bons seriam vitoriosos. Os Essénios viam-se a si próprios
como os Filhos da Luz que combatiam os Filhos das Trevas. Desconfiavam da mulher
sedutora, cujo coração é uma serpente, cujas roupas são enfeites e que desviavam
o homem justo do seu caminho: Lilith, segundo o mito bíblico. Um demónio que voa
de noite para perverter os homens. O meu destino está ligado ao dos manuscritos.
Contudo, não era predestinado. Na minha juventude fui soldado: cumpri o serviço
militar na terra de Israel e combati noites inteiras para defender o meu país. A
minha família não era religiosa: o meu pai, paleógrafo, consagrara a sua vida
ao estudo dos textos antigos, mas de um ponto de vista científico, pelo menos era
o que eu pensava. Quanto a mim, depois do exército encontrei a religião: ela acolheu-me
numa manhã de Primavera, graças ao encontro com um rabino no quarteirão de Mea
Shearim, em Jerusalém. Era o Rabi: foi ele quem me ensinou os preceitos da Tora,
as discussões do Talmude e até certos mistérios da Cabala que só
os iniciados conhecem. Tornou-se o meu mestre, o meu mentor, e eu tornei-me o seu
discípulo. Graças a ele, descobri um mundo diferente daquele em que vivia, um mundo
habitado por uma alma, um mundo com o traje do esplendor e eu próprio vesti a sobrecasaca
escura dos estudantes da Lei.
Dediquei-me
ao estudo de todo o coração, procurei a sabedoria com toda a minha alma e com
todos os meus poderes, e encontrei-a, pois li muito, aprendi muito e, nas
danças misteriosas dos hassidim ao dealbar da madrugada descobri tanta graça
e tanta beleza que não mais os quis deixar. Então abri asas e afastei-me da minha
família, ateia e julgava eu, despreocupada, longínqua. Nunca mais comi em casa
da minha mãe pois a sua cozinha não era casher, e vi o meu pai, que tanto
amava, de longe em longe, até ao momento em que, sem querer, me vi implicado
numa investigação policial. Deste modo, eu, Ary Cohen, o oficial, o estudante, o
escriba, tornei-me detective». In Eliette Abécassis, A Última Tribo,
2004, tradução de Carlos Oliveira, Editora Livros do Brasil, Colecção Suores
Frios, Lisboa, 2005, ISBN 972-382-763-8.
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