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Uma
centelha de paixão
«(…)
Tal não consegui. Q futuro é reputadamente difícil de prever, Vossa Reverência.
O vosso não, Don Juan, tornou frei Ignacio, rangendo os dentes. Tão logo se
extinga o vosso favor junto de el-rei, cuidarei pessoalmente de que sejais punido
por todos e cada um dos vossos pecados. Os maiores pecadores são sempre os
últimos a ser punidos, Vossa Reverência. Com a vossa permissão, o Rei está à
minha espera.
Também
eu, replicou o inquisidor. porém, vergando-se à autoridade do rei, estalou os
dedos para que os guardas nos deixassem passar. Os soldados e o mar de povo
abriram alas e Cristóbal convenceu ansiosamente a égua a prosseguir. Ensinou-me
há muitos anos o marquês a jamais mostrar fraqueza diante de um adversário, mas,
assim que nos perdemos da vista de frei Ignacio, abati-me contra o fundo do meu
assento e suspirei de alívio. Retomámos o galope e, ao descermos a derradeira
colina antes da cidade, avistei as suas portas, acolhedoras como dois braços
abertos. Na outra margem, contudo, sobressaía a pedra do Castillo de San Jorge,
quartel-general da Inquisição (maldita), qual monstro apostado em sitiar a nossa
Sevilha.
Depressa!
Mais depressa! Cristóbal estimulava a égua, brandindo as rédeas, enquanto
transpúnhamos, aos solavancos, as portas da cidade. A Bonita percorreu
velozmente o troço que ainda nos separava do Alcázar, com a carruagem sacudida
de um liado para o outro, até chegarmos enfim à Puerta del León.
Depois
de me ter feito anunciar, abriram-se, pare eu passar, as pesadas portas de
madeira, da altura de dois homens. Correndo para o interior do palácio, cheguei
finalmente ao salón de Embajadores. Enchia o salão uma nobreza aduladora, e o
ar achava-se carregado de um burburinho de mexericos de corte e intriga
política. Apresentam-se as paredes revestidas de azulejo e estuque segundo os
enredados motivos geométricos dos Mouros. Orlam a divisão colunas de mármore negro
com capitéis dourados, unidas por arcos de ferradura. Olhei boquiaberto a
abóbada de ouro que resplandecia como um céu estrelado. Foi ali mesmo, naquela
câmara de recepção, que, há muito tempo, o rei Pedro, o Cruel, resolveu matar o
seu irmão por se ter enamorado da princesa com quem ele próprio devia casar.
Perguntei-me se também eu seria ali condenado à morte.
O
desejo de uma mulher
A audiência
estava a chegar ao fim quando fui chamado à presença da Coroa. Enquanto me
dirigia ao extremo da câmara, fez-se silêncio entre a multidão. Todos alongavam
o pescoço para ouvir. Ajoelhei ante o nosso rei, em quem a idade começa a
manifestar-se. Os seus verdes olhos continuam argutos e desconfiados como
sempre, mas o seu rosto cansado, com a barba grisalha, parece agora bem mais
perto da cova. Sofre de gota, enfermidade que deve ter tornado insuportável a
viagem desde Madrid, e tinha a perna direita assente numa cadeira de armar que
lhe foi oferecida peio imperador da China. Somente a bancarrota do tesouro
real, consequência de guerras a mais e de um império infinito, pode tê-lo
forçado a vir receber os galeões carregados de riquezas que em breve aportarão
a Sevilha. Sabia que o rei desprezava a presunção e a falsidade da corte tanto
quanto eu, e via que não tentava dissimular o seu enfado. Deixava-se
escorregar, o nosso devoto rei, pelo trono de mogno de espaldar direito, tão
austero quanto ele». In Douglas Carlton Abrams, O Diário Perdido
de Don Juan, 2007, Editorial Presença, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-233-768-7.
Cortesia
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