quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O Diário Perdido de Don Juan. Douglas Carlton Abrams. «Depressa! Mais depressa! Cristóbal estimulava a égua, brandindo as rédeas, enquanto transpúnhamos, aos solavancos, as portas da cidade. A “Bonita” percorreu velozmente o troço que ainda nos separava do Alcázar

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Uma centelha de paixão
«(…) Tal não consegui. Q futuro é reputadamente difícil de prever, Vossa Reverência. O vosso não, Don Juan, tornou frei Ignacio, rangendo os dentes. Tão logo se extinga o vosso favor junto de el-rei, cuidarei pessoalmente de que sejais punido por todos e cada um dos vossos pecados. Os maiores pecadores são sempre os últimos a ser punidos, Vossa Reverência. Com a vossa permissão, o Rei está à minha espera.
Também eu, replicou o inquisidor. porém, vergando-se à autoridade do rei, estalou os dedos para que os guardas nos deixassem passar. Os soldados e o mar de povo abriram alas e Cristóbal convenceu ansiosamente a égua a prosseguir. Ensinou-me há muitos anos o marquês a jamais mostrar fraqueza diante de um adversário, mas, assim que nos perdemos da vista de frei Ignacio, abati-me contra o fundo do meu assento e suspirei de alívio. Retomámos o galope e, ao descermos a derradeira colina antes da cidade, avistei as suas portas, acolhedoras como dois braços abertos. Na outra margem, contudo, sobressaía a pedra do Castillo de San Jorge, quartel-general da Inquisição (maldita), qual monstro apostado em sitiar a nossa Sevilha.
Depressa! Mais depressa! Cristóbal estimulava a égua, brandindo as rédeas, enquanto transpúnhamos, aos solavancos, as portas da cidade. A Bonita percorreu velozmente o troço que ainda nos separava do Alcázar, com a carruagem sacudida de um liado para o outro, até chegarmos enfim à Puerta del León.
Depois de me ter feito anunciar, abriram-se, pare eu passar, as pesadas portas de madeira, da altura de dois homens. Correndo para o interior do palácio, cheguei finalmente ao salón de Embajadores. Enchia o salão uma nobreza aduladora, e o ar achava-se carregado de um burburinho de mexericos de corte e intriga política. Apresentam-se as paredes revestidas de azulejo e estuque segundo os enredados motivos geométricos dos Mouros. Orlam a divisão colunas de mármore negro com capitéis dourados, unidas por arcos de ferradura. Olhei boquiaberto a abóbada de ouro que resplandecia como um céu estrelado. Foi ali mesmo, naquela câmara de recepção, que, há muito tempo, o rei Pedro, o Cruel, resolveu matar o seu irmão por se ter enamorado da princesa com quem ele próprio devia casar. Perguntei-me se também eu seria ali condenado à morte.

O desejo de uma mulher
A audiência estava a chegar ao fim quando fui chamado à presença da Coroa. Enquanto me dirigia ao extremo da câmara, fez-se silêncio entre a multidão. Todos alongavam o pescoço para ouvir. Ajoelhei ante o nosso rei, em quem a idade começa a manifestar-se. Os seus verdes olhos continuam argutos e desconfiados como sempre, mas o seu rosto cansado, com a barba grisalha, parece agora bem mais perto da cova. Sofre de gota, enfermidade que deve ter tornado insuportável a viagem desde Madrid, e tinha a perna direita assente numa cadeira de armar que lhe foi oferecida peio imperador da China. Somente a bancarrota do tesouro real, consequência de guerras a mais e de um império infinito, pode tê-lo forçado a vir receber os galeões carregados de riquezas que em breve aportarão a Sevilha. Sabia que o rei desprezava a presunção e a falsidade da corte tanto quanto eu, e via que não tentava dissimular o seu enfado. Deixava-se escorregar, o nosso devoto rei, pelo trono de mogno de espaldar direito, tão austero quanto ele». In Douglas Carlton Abrams, O Diário Perdido de Don Juan, 2007, Editorial Presença, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-233-768-7.

Cortesia de EPresença/JDACT