terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O Juramento da Rainha. Isabel a Católica. CW Gortner. «Aliviada, percebi que Beatriz resolvera não fazer das suas, seguindo recatadamente ao meu lado. Mas quando íamos chegando a Arévalo, com o céu tingido de listas em tons de coral…»

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«(…) Estava apenas a pensar que, se Joana d’Arc se tivesse cruzado convosco, ter-vos-íeis juntado a ela sem hesitar. E teria mesmo. Beatriz ergueu-se, de um pulo. Teria atirado os meus livros e bordados pela janela e saltado para o primeiro cavalo livre que encontrasse. Como deve ser maravilhoso fazer o que se quiser, lutar pelo nosso país e viver só com o céu por tecto e com a terra por cama! Exagerais, Beatriz. As cruzadas envolvem mais sofrimentos do que nos conta a História. Talvez, mas pelo menos estaríamos a fazer qualquer coisa! Olhei-lhe para as mãos, que estavam cerradas como se ela estivesse a empunhar uma arma. Com essas vossas enormes mãos, sem dúvida que conseguiríeis manejar uma espada, gracejei. Ela ergueu o queixo. Sois vós a princesa e não eu. Seríeis vós a empunhar a espada. Senti-me cheia de frio, como se o dia tivesse dado lugar à noite, sem aviso. Estremeci. Não creio que alguma vez conseguisse liderar um exército retorqui em voz baixa. Deve ser terrível vermos os nossos compatriotas esquartejados pelos nossos inimigos e sabermos que a nossa própria morte poderá vir a todo o instante. Ergui a mão, antecipando-me ao protesto de Beatriz. Tão-pouco concordo que citeis Joana d’Arc como um exemplo a seguir. Ela lutou pelo seu príncipe e isso só lhe valeu uma morte cruel. Não desejaria tal destino a ninguém. Decerto não o quero para mim. por aborrecido que isso vos pareça, prefiro casar e ter filhos, como é o meu dever. Beatriz lançou-me um olhar penetrante. O dever é para os fracos. Não me digais que nunca pusestes tudo isso em causa. Devorastes aquele livro dos reis nas cruzadas que está na nossa biblioteca como se fosse maçapão. Forcei uma risada. Sois incorrigível. Nesse momento chegaram Alfonso e don Chacón, que parecia muito aborrecido. Vossa Alteza, minha Senhora de Bobadilla, não devíeis ter fugido a galope daquela maneira. Poderíeis ter-vos magoado, ou pior. Quem sabe o que espreita nestes campos ao anoitecer? Apercebi-me do medo na sua voz. Embora o rei Henrique tivesse entendido por bem deixar-nos em paz em Arévalo, isolados da corte, a sua sombra pairava nas nossas vidas. A ameaça de ser raptada era um risco a que há muito me habituara, tanto que passara a ignorá-lo. Mas Chacón era devotado à nossa proteção e relava muito a sério qualquer possibilidade de ameaça.
Perdoai-me, retorqui. Foi um erro. Não sei o que me deu. O que quer que tenha sido, estou impressionado, disse Alfonso. Quem vos teria imaginado uma tal amazona, querida irmã? Eu, uma amazona? De maneira nenhuma. Apenas quis testar o Canela. Ele saiu-se bem, não achais? É bem mais veloz do que o seu tamanho sugere. Alfonso abriu um sorriso. Pois é. E sim, de facto, saístes-vos muito bem. E agora temos de regressar, disse Chacón. Já é quase noite. Vinde, iremos pela estrada principal. E, desta vez, nada de arrancar a galope. Fui claro? De novo a cavalo, eu e Beatriz seguimos o meu irmão e Chacón, crepúsculo adentro. Aliviada, percebi que Beatriz resolvera não fazer das suas, seguindo recatadamente ao meu lado. Mas quando íamos chegando a Arévalo, com o céu tingido de listas em tons de coral, não pude evitar recordar a nossa conversa e, contra vontade, perguntar-me como seria ser-se um homem.
A torre de menagem estava deserta, o que era anormal àquela hora, e, mal entrámos no salão de banquete e vimos que a comprida e lascada mesa central ainda não fora posta para a refeição da noite, pressenti que algo se passava. Alfonso e Chacón estavam nos estábulos a desselar e a escovar os cavalos. Enquanto Beatriz me despia o manto, olhei para a lareira; nem tão-pouco fora acesa. A única luz era a dos archotes na parede, que iam cuspindo fagulhas. Onde estará toda a gente?, perguntei, massajando as mãos esfoladas pelas rédeas e tentando soar indiferente. Julguei que doña Clara fosse estar na torre de menagem à nossa espera, com a sua chibata e as suas reprimendas. Também eu. Beatriz franziu o sobrolho. Está tudo calmo demais. Perguntei-me se a minha mãe teria adoecido de novo enquanto andáramos a cavalgar. Senti uma pontada de culpa. Deveria ter ficado ali, em vez de sair de forma tão súbita, sem dizer uma palavra. A minha tutora entrou e veio apressadamente ter connosco. Aí vem ela, sussurrou Beatriz, mas eu percebi de imediato que a preocupação no rosto da minha aia não tinha a ver connosco. Se doña Clara ficara zangada com a nossa fuga, algo mais importante acabara entretanto por se sobrepor a isso. Até que enfim, disse ela, sem a severidade do costume. Onde vos metestes? Sua Alteza, a vossa mãe, tem estado a perguntar por vós. A minha mãe estivera a perguntar por mim. O meu coração acelerou e, como se de longe, ouvi Beatriz dizer: estávamos com Sua Alteza, o príncipe. Não vos lembrais, doña Clara? Dissemos que íamos...» In CW Gortner, O Juramento da Rainha, Isabel, a Católica, 2012, tradução de Miguel Romeira, Topseller, 20/20 Editores, 2013, ISBN 978-9879-862-627-1.

Cortesia de Topseller/JDACT