segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Os Caçadores de Livros. Raphael Jerusalmy. «É a única das suas posses que o liga ainda ao seu passado. Agarra-se-lhe como a uma amarra. Antes de regressar, permite-se fazer com que lhe cortem o cabelo à tigela à altura do pescoço»

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«(…) As bancas de madeira cedem sob o peso das caixas e das ânforas. O ar está cheio de odores de especiarias, de essências perfumadas, de vapores de vinho, de extractos de tinturaria. Colin sofre o assalto dos apregoadores que lhe fazem sinal a chamá-lo, o agarram pelo braço, sem se deixarem impressionar pela sua envergadura de gigante. Estuga o passo, abrindo caminho por entre a vaga dos basbaques, deslizando por entre as tapeçarias e peças de estofado penduradas diante das tendas. No corredor central, descortina uma banca cujos tons sóbrios destoam no meio do turbilhão variegado das sedas. Junto à banca, clientes e vendedores discutem em voz baixa, alheados dos gritos e dos risos que explodem em redor. Uma tabuleta discreta anuncia em letras góticas: Casa Johann Fust e Petrus Schoeffer, impressores-livreiros. Ao longo de prateleiras de madeira toscamente cortada e improvisadamente encerada, acumulam-se, numa amálgama desordenada, rolos de pergaminho e volumes com encadernações de pele. Ao fundo, do lado de dentro do balcão, uma figura esbelta, num traje de fidalgo traçado e remendado, coloca uma arca cheia de livros aos pés de um velho com a barba bem cuidada. As mãos franzinas do ancião mergulham imediatamente no interior da arca, pesquisando e escolhendo com destreza. Depois, com uma expressão céptica, o livreiro soergue-se e oferece o seu preço. O fidalgo de poucos meios recusa, visivelmente escandalizado. O velho não tuge nem muge. Passando por cima de floreados inúteis, desata os cordões de uma bolsa de veludo, ciente de que um senhor endividado não resiste durante muito tempo à vista de um punhado de moedas de prata. Embaraçado pela desconsideração, o nobre embolsa a quantia sem se dignar contá-la e gira rapidamente sobre os calcanhares, tentando reassumir o ar altivo que convém à sua condição. Colin aproxima-se. É a primeira vez que aborda aquele cujos passos segue desde há meses.  Estende-lhe a sua lista com a mão hesitante. O velho mercador relanceia-a de início com negligência. Em seguida, num movimento de recuo acentuado, interrompe a consulta do inventário e fita Colin por um demorado momento, incrédulo.
Com uns quantos escudos que Guillaume Chartier lhe deu, Villon renova a sua indumentária. Compra dois calções, duas camisas e uma capa forrada de pele de lontra, tudo de um cinzento insípido que, durante muito tempo, poderá passar por limpo. Há esplêndidos chapéus pendurados do tecto. Mas a insistência do vendedor revela-se inútil, François não se desfará do seu velho gorro. Este é uma peça de feltro amarrotado, de cor imprecisa, que talvez tenha sido outrora de um verde elegante, e com o rebordo triplo repuxado para cima. Trata-se de um curioso tricórnio que sobreviveu a numerosos desaires e tribulações. Cada uma das suas pregas, à maneira de uma ruga familiar, evoca uma recordação. François recusa separar-se dele. É a única das suas posses que o liga ainda ao seu passado. Agarra-se-lhe como a uma amarra. Antes de regressar, permite-se fazer com que lhe cortem o cabelo à tigela à altura do pescoço, o escanhoem e lhe estuquem grosseiramente as cavidades dentárias. O barbeiro pragueja contra a grande feira que lhe rouba os clientes a golpes de imposturas e de enfeites. Dizer que há até mesmo charlatães médicos que pretendem saber reparar dentes melhor do que ele! De volta à estalagem, François sobe às águas-furtadas. Entra num pequeno quarto mesquinhamente mobilado e que cheira a bafio. Encontra Colin à sua espera, mantendo o equilíbrio sentado num banco corrido. Villon dá-lhe uma palmada no ombro e puxa em seguida o seu alforge de debaixo da cama. Os livros lá estão. Tudo o que há a fazer é esperar.
Por volta do meio-dia, François ouve um crescendo de passos pesados que se aproximam, entrecortados aqui e ali por imperiosos golpes de bengala. Colin levanta-se antes ainda de o castão se fazer ouvir percutindo a madeira carcomida da porta. Executa um esboço de vénia, indica à visita a única cadeira de espaldar, fazendo o possível por se mostrar cortês. Fust. Johann Fust. Ourives e impressor em Mogúncia. François, sentado sobre as pernas recolhidas e os joelhos afastados numa enxerga, mostra-se menos acolhedor. Observa o recém-chegado com um ar desconfiado. A aparência venerável do sexagenário, o seu aprumo altivo à maneira alemã, o seu traje irrepreensível de burguês não o tranquilizam. O outro encara-o também com desconfiança, desconcertado por um instante pelo aspecto pouco cativante do seu anfitrião. François parece-lhe ter uma expressão insolente. Ou antes ardilosa. É um rapaz manifestamente sob o efeito de uma tremenda ressaca. Seja como for, nem o brutamontes imponente que fica encostado à porta nem aquele outro vagabundo maldesencardido, nenhum deles parece intimidar o velho impressor. Não é a primeira vez que este faz negócio com receptadores. Conhece-os de todas as espécies: padres despadrados, filhos de boas famílias endividados, soldados que regressam das suas campanhas. Os melhores entre todos os livros têm muitas vezes uma triste sorte. Caem nas mãos de patetas que se sentem surpreendidos por haver quem possa perder tempo a lê-1os, e muito mais ainda, por haver quem queira adquiri-los pagando à vista. E é assim que os conhecimentos circulam e se difundem de furto em furto, de falência em herança. Para grande felicidade dos livreiros. Villon sabe bem que o seu convidado fareja uma ocasião afortunada. Todavia, joga observando as regras do jogo, deixando Fust crer que é o mais hábil, ou, pelo menos, o mais entendido. François nunca fez gala do seu saber, e foi assim que, em mais do que uma ocasião, apanhou mestres da universidade e juízes do tribunal desprevenidos. Aprendeu a nunca se servir da sua erudição ostentando-a, mas antes a dissimulá-la sob um ar de simplório, para só a ela recorrer no devido momento, como de um golpe de espada secreto». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.

Cortesia de CAutor/JDACT