«No
início da Primavera de 1655 largava do Tejo, rumo a Goa, a armada da carreira
que anualmente fazia a ligação entre Portugal e o Estado da Índia. A deste ano
era constituída por quatro embarcações: a almiranta Santíssimo Sacramento da
Trindade, galeão de 54 peças, sob o comando de António Sousa Meneses; a Bom
Jesus da Vidigueira, nau de 30 peças, de que era capitão Jerónimo Carvalho,
piloto Manuel André e mestre Luís Fernandes; o galeão de 30 peças, São
Francisco, comandado por Baltasar Paiva Brandão; e o patacho Santa
Teresa de Jesus, de 12 peças, conduzido por Manuel Castro Favila ou Tavila.
Esta frota tinha a particularidade de transportar o novo vice-rei Rodrigo Lobo
Silveira, conde de Sarzedas, que viajava na nau Bom Jesus da Vidigueira,
feita nau capitânia. Do ocorrido, para além do relato do jesuíta Joseph
Tissanier, incluído na sua relação de viagem de França ao reino de Tonquim,
editado poucos anos depois, chegaria até nós o diário que o vice-rei elaborou,
desde que se despedira de Lisboa, até ao termo da sua laboriosa e atormentada
governação. Acompanhavam esta armada três embarcações com destino à Madeira e
seis a Cabo Verde e Maranhão e uma a Angola que, ao longo do percurso, se foram
gradualmente dela separando.
Recorde-se
qu e depois de uma década de infortúnios para a carreira da Índia que se
seguiram à Restauração, a partir de 1650 experimentou-se uma recuperação que se
prolongará até 1658, altura em que, de novo, se acumularão desaires, que se
arrastarão até meados da década seguinte. As duas naus eram seguras e velozes,
enquanto o galeão era navio de mau governo e, com o patacho, acabariam
por ir dilatando a viagem. Todavia, o comando das várias embarcações havia
sido cometido a capitães e pilotos experimentados: Jerónimo Carvalho era tido
por prático nas coisas do mar e os pilotos da almiranta, do patacho e da Bom
Jesus haviam feito esta viagem em anos anteriores.
Como
é do conhecimento dos
estudiosos deste tema, são escassos os relatos e outras
fontes para o estudo desta carreira, sobretudo para os séculos XVII e XVIII. Daí
a importância que adquirem os que gradualmente vão surgindo, um pouco ao acaso,
já que o principal acervo para o seu estudo, os livros de nau, terão
desaparecido nas chamas que devoraram o arquivo da Casa da Índia no rescaldo do
terramoto de Lisboa, de 1755. É certo que missionários e viajantes deixaram muitas
vezes relatos, impressões e comentários das suas viagens e as de vice-reis e
arcebispos deram também ocasião a relações, quase sempre anónimas, constituindo
assim um corpus documental de grande relevância para o estudo do tema.
Todavia estas últimas, porque elaboradas em muitos casos com a intenção de
enaltecer o quotidiano ou a intervenção do passageiro ilustre a bordo,
distorcem de algum modo a realidade, exigindo ao historiador redobrada atenção no
trabalho de crítica à fonte.
O Diario do Senhor conde de Sarzedas na viagem e governo
da India, constitui um repositório
informativo de enorme riqueza histórica. Nele averbou, dia a dia, a navegação
efectuada e as condições climáticas que a determinaram, a rotina do quotidiano,
como uma imensidade de acontecimentos ocorridos ao longo dos cinco meses de
viagem. Mas, chegando a Goa, prosseguiu sem qualquer interrupção o registo diário
da sua actividade, tombando aí alguma correspondência e outros poucos
documentos. Mas o autor tece também comentários sobre a situação económica, política,
social e religiosa do Estado Português da Índia, como opina sobre muitos dos
seus intervenientes. Denuncia inoperâncias e fraudes e critica severamente o
funcionamento das instituições. Daí a acrescida importância do seu conteúdo. Se
um diário é, por princípio, uma fonte importante para a história do quotidiano,
o certo é que a rotina que o conde de Sarzedas imprimiu à sua quase frenética
actividade político-administrativa, não constituirá um aliciante para o
desenvolvimento do tema. Daí a exigência de alguma imaginação metodológica no
aproveitamento da fonte.
Começado
à data da partida de Lisboa, a 23 de Março de 1655, terminaria a 1 de Janeiro
de 1656, cerca de duas semanas antes da sua morte, ocorrida a 13 de Janeiro. O
diário de Rodrigo Lobo Silveira chegou até nós através de uma cópia mandada
executar por Luís Afonso Dantas, casado com uma neta do vice-rei, a partir de
documentos que estiveram na posse de seu sogro, Manuel Lobo Silveira. Este
partira para a Índia em Abril de 1649 e por lá permaneceu até 1708, data da sua
morte (Manuel Lobo Silveira saiu de
Lisboa em 15 de Abril de 1649 no galeão São Lourenço, que se perdeu quando eram decorridos cerca de seis meses e
meio de navegação; a outra nau de sua companhia, a Bom Sucesso, desapareceria a 12 léguas de Moçambique. Com outros
companheiros marchou durante dezoito dias com enfadamento e descomodidades até
alcançar a fortaleza. Aqui permaneceu um ano até aguardar viagem para Goa, onde
chegou a 4 de Outubro de 1650; governava o Estado da Índia Filipe de
Mascarenhas, que o casou com Francisca Xavier Morais).
A
partir de 1675 procedeu a uma grande recolha de documentos e variadas informações,
além de lembranças da sua casa, que ocuparam mais de uma centena de livros
manuscritos. Elaborados de forma desorganizada, já que ao mesmo tempo
escrevia em differentes livros os mesmos sucessos, com dificuldade se
separava o util do inutil. Mas, como entre muita inutilidade havia
algumas memórias que poderiam ser úteis a huma verdadeira historia, o
vice-rei João Saldanha Gama (1725-1732) ordenou a Luís Afonso Dantas, genro e
herdeiro de Manuel Lobo Silveira e em cuja posse estavam os livros, que
mandasse tresladar tudo o que fosse de interesse. Estimava-se que a tarefa
pudesse estender-se por vários anos de trabalho, não só por haver muito que
tresladar, como por ser difficultozo e necessitar de muita aplicação o
exame de tudo Na monção de 1727 partiria de Goa o primeiro códice onde, entre
outros documentos copiados, constava o presente diário. Ignoramos se o trabalho
teve continuidade». In Artur Teodoro Matos, Diário do conde de Sarzedas, Vice-rei do
Estado da Índia (1655 -1656), Lisboa, colecção Outras Margens, CNCDPortugueses,
2001, ISBN 972-787-052-X.
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