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de Janeiro de 1492
Com o passar dos dias, os Mouros
perderam a coragem. A escaramuça da rainha acabou por ser a sua última batalha.
O seu líder estava morto, a cidade cercada, estavam a morrer à fome nas terras
que os seus antepassados haviam tornado férteis. Pior, o apoio prometido da
África falhou, os Turcos haviam jurado amizade, mas os janíçaros não chegaram, o
rei enlouquecera, o seu filho estava retém dos Cristãos, e diante deles estavam
os príncipes da Espanha, Isabel e Fernando, com todo o poder da Cristandade por
trás de si, com uma guerra santa declarada e uma cruzada cristã que ganhava
forma com o odor do sucesso. Alguns dias após o confronto dos líderes, Boabdil,
o rei de Granada, acordara as condições de paz, e alguns dias depois, numa cerimónia
planeada com toda a graça típica dos mouros da Espanha, desceu a pé até aos
portões de ferro da cidade, com as chaves do palácio de Alhambra sobre uma
almofada de seda e entregou-as ao rei e à rainha da Espanha, numa rendição
total. Granada, o forte vermelho que fica sobre a cidade para a proteger e o
lindíssimo palácio escondido dentro das suas muralhas, o Alhambra, foram
entregues a Fernando e a Isabel.
Vestidos com as maravilhosas
sedas do inimigo derrotado, turbantes, chinelos, gloriosos como califas, a
família real espanhola, brilhando com o espólio da Espanha, assumiu o controlo
de Granada. Nessa tarde. Catarina, a Princesa de Gales, percorreu com os pais o caminho íngreme e as
curvas através das sombras das árvores altas, até ao mais belo palácio da
Europa. Dormiu essa noite no harém coberto de ladrilhos maravilhosos e acordou
ao som da água ondulante das fontes de mármore e imaginou-se uma princesa muçulmana,
nascida para o luxo e a beleza, assim como Princesa de Gales. A família
espanhola com os seus oficiais na dianteira e a guarda real atrás, gloriosos
como sultões, entrou no forte pela enorme torre quadrada, conhecida como Porta
da Justiça. Quando a sombra do primeiro arco da torre incidiu no rosto voltado
para cima de Isabel, os trompeteiros tocaram um grito de desafio, tal como
Josué diante dos muros de Jericó, como se afastassem assim os demónios do
infiel que aí permaneciam. De imediato se ouviu um eco da explosão de som, um
suspiro estremecedor de todos os que estavam reunidos depois da porta de
entrada, empurrados contra as paredes douradas, as mulheres semi-veladas nas
suas túnicas, os homens de pé orgulhosos e em silêncio, observando, na
expectativa do que os conquistadores fariam a seguir. Catarina olhou por cima
do mar de cabeças e avistou as formas fluidas da escrita árabe gravadas nas
paredes resplandecentes. O que diz?, perguntou a Madilla, a sua ama. Madilla
olhou de soslaio para cima. Não sei, afirmou mal-humorada. Negava sempre as
suas raízes muçulmanas. Sempre tentara fingir que não sabia nada sobre os
Mouros ou as suas vidas, apesar de ter nascido e sido criada como moura e de só
se ter convertido, segundo Joana, por conveniência. Dizei-nos, ou
beliscamos-vos, propôs Joana docemente. A jovem mulher franziu o sobrolho na
direcção das duas irmãs. Diz: Deus permita que a justiça do Islão prevaleça
aqui dentro. Catarina hesitou por um momento, ouvindo a aura orgulhosa da
certeza, uma determinação para imitar a voz da mãe.
Bem, Ele não permitiu, comentou
Joana de modo inteligente. Alá desertou de Alhambra e Isabel chegou. E se
vocês, Mouros, conhecessem Isabel como nós conhecemos, saberiam que o maior
poder está a chegar e o poder menor está a sair. Deus abençoe a rainha,
respondeu Madilla prontamente. Eu conheço suficientemente bem a rainha Isabel. Enquanto
falava, as grandes portas à sua frente, de madeira negra enfeitada com pregos
negros, abriram-se nas suas dobradiças negras, e com mais um toque de
trompetas, o rei e a rainha entraram a passos largos no pátio interior. Como
dançarinos que tivessem ensaiado até obterem uma coreografia perfeita, a guarda
espanhola dividiu-se entre o lado direito e esquerdo, no interior das muralhas
da cidade, verificando se o local era seguro, e se não haveria soldados desesperados
a preparar uma última emboscada. O grande forte de Alcazaba, construído como a
proa de um navio, projectando-se sobre a planície de Granada, ficava à
esquerda, e os homens afluíram aí, correndo pela praça da parada, rodeando as
muralhas, subindo e descendo às torres, a correr. Por fim, Isabel, a rainha, levantou
o olhar para o céu, protegeu os olhos com a mão onde retiniam as pulseiras de
ouro muçulmanas, e riu-se bem alto ao ver o estandarte sagrado de Santiago e a
cruz prateada da cruzada a esvoaçar, onde antes estivera o crescente». In
Philippa Gregory, Catarina de Aragão, A Princesa Determinada, Livraria
Civilização Editora, 2006, ISBN 978-972-262-455-8.
Cortesia
Civilização/JDACT