«(…) Um céu de um azul brilhante e
um sol quente estendiam-se pelo vale e subiam até aos montes. Ela e Filipe, cada
um sob um dossel que ostentava os seus brasões e acompanhados pelo enorme
séquito, estavam a uma légua de Toledo. O pai, rodeado pelos seus nobres, clérigos
e guardas, viera ao seu encontro. Eram umas boas-vindas para além de tudo quanto
sonhara. O único desapontamento era a ausência da mãe, que ficara em casa, ainda
indisposta. Subiram juntos o monte, entrando na cidade pelo arco em ferradura da
antiga Porta Bisagra. Depois prosseguiram pelas ruas estreitas, atapetadas de alecrim
e tomilho, até à Porta do Sol. O cortejo era um esplendor de cores que brilhavam
como ouro e prata. O povo, inclinado nas varandas adornadas com tecidos de
todos os tipos e cores, dava-lhes vivas, enquanto subiam até à catedral. Longa
vida aos Reis Católicos. Longa vida à princesa Joana e ao príncipe Filipe. Que Deus
abençoe os vossos filhos, lá tão longe, e lhes conceda uma longa vida. Joana acenava
e sorria, sentindo que o coração lhe ia rebentar de orgulho, adorando cada momento.
Os tambores, as cornetas, as trompas
e os cornetins aumentavam o clamor. Pétalas de flores caíam profusamente sobre os
dosséis e sobre os ombros e as cabeças dos que seguiam no cortejo. Entraram,
por fim, na grande praça sobranceira à catedral. Também ali a multidão era enorme,
apertando-se em espaços que pareciam não existir antes, agarrando-se às paredes
e às grades das janelas, tal era a sua determinação em ver a princesa. A larga frontaria
da sua igreja, com os seus portais enormes, era ainda mais imponente do que se lembrava.
Os santos de pedra no topo das colunas e os que repousavam nos nichos arqueados
olhavam, como se se alegrassem pelo seu regresso, alguns pareciam mesmo ter os braços
estendidos em boas-vindas. Aquela catedral, onde Joana fora baptizada, iria testemunhar
daí a dias a proclamação dos seus direitos hereditários às coroas de Espanha.
Joana, Filipe e Fernando
desmontaram e aproximaram-se dos degraus. O silêncio desceu sobre a multidão e o
arcebispo Cisneros avançou, transportando o seu magnífico báculo de ouro cravejado
de jóias. Era aquele homem que em tempos tanto a intimidara? Os seus olhos não lhe
trespassavam a alma e a boca já não era dura e pronta a criticar. Joana decicliu
que parecia muito mais um tio simpático do que um padre desaprovador. Talvez o tivesse
julgado mal no passado. No interior da catedral, os pilares, a arcaria das
capelas, as divisórias e as estátuas eram banhados pela luz do Sol que entrava a
jorros pelas inúmeras janelas. O cortejo passou pela coluna que marcava o local
do primeiro altar, havia muitos séculos, quando a Virgem Maria descera à Terra e
abençoara o monge Ildefonso por defender a sua virgindade contra os descrentes.
Joana sabia que Filipe não daria importância a isso, mas mesmo assim tinha de lhe
dizer. Passaram finalmente para lá da divisória de prata do coro e foram levados
aos seus lugares.
À missa solene foi demasiado longa,
para já não falar dos cânticos a partir do intróito, que, apesar de imaculados graças
a um excelente cantor, se revelaram uma grande frustração. Filipe inspeccionava
as unhas finamente tratadas com mais intensidade a cada minuto que passava e Joana
deixou o olhar vaguear para além das nuvens azuladas do incenso até às capelas laterais;
pousou-o, por fim, nos arautos chorosos, em tamanho natural, com os seus tabardos
de cores magníficas, que guardavam o túmulo de Catarina de Lencastre, sua bisavó.
Começou, então, a pensar na irmã Catarina e em como seria a vida em Inglaterra.
O coro cantava o Kyrie Eleison, Christe Eleison. Acabou, por fim.
Agora podia ir ver a mãe». In Linda Carlino, That Other Joana, 2007,
Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, ISBN 978-972-234-231-5.
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