segunda-feira, 9 de julho de 2018

O Labirinto da Saudade. Eduardo Lourenço. «Os começos do século XIX, momento em que o raio da História nos caiu em casa, na sossegada e sonambúlica casa portuguesa, farão desse processo uma estrutura que se manifesta sem falhas há cento e oitenta anos»

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«(…) Nós vivemos então um drama digno doHenrique IV de Pirandello. É difícil conceber que a confusão entre o real e o sonho possa ir mais longe do que o foi na cabeça do António Vieira das alegações diante do Santo Ofício (maldito), mistura única de lucidez delirante e delírio divino. Nele se operou como em ninguém mais a conversão da nossa longa ansiedade pelo destino pátrio em exaltada aleluia, a transfiguração do simples cantar de amigo com que nos embalámos no alvorecer inquieto, em cantata sublime ao Quinto Império.Assim liquidámos, no imaginário e em termos magníficos, o segundo traumatismo, numa barroca inversão que vale bem outras futuras, postas na conta larga e humanística de nossa-senhora-da-dialéctica. De cativos, a senhores de sonho do mundo, de humilhados e ofendidos da História, a eleitos, servidos pelos outros, paranóica mas generosa visão, paralela à que o mesmo Vieira prometia no céu aos escravos sem redenção terrestre dos engenhos e fazendas do Brasil, é que Pombal pensou libertar-nos por um europeísmo à Pedro da Rússia, que não convenceu os nossos boiardos locais, analfabetos, glutões e preguiçosos, como William Beckford os virá encontrar. Cada período de força do dinamismo tem sido seguido sempre do que, em linguagem freudiana, se chamaria o regresso do recalcado.
Os começos do século XIX, momento em que o raio da História nos caiu em casa, na sossegada e sonambúlica casa portuguesa, farão desse processo uma estrutura que se manifesta sem falhas há cento e oitenta anos. Em nenhum tempo do seu percurso a existência nacional foi vivida em termos tão esquizofrénicos como no século XIX. No centro desse percurso está simbolicamente o ninguém do frei Luis Sousa e na dramática e quotidiana realidade, um país pela primeira vez posto na balança da Europa que era ao mesmo tempo a dos seus interesses e das suas ideologias, tapete de guerra civil ou monarquia a salvar com invasão de estrangeiros. Aberto com a fuga o Brasil, o século liberal termina com a liquidação física, se não moral, de uma monarquia a quem se fazia pagar, sobretudo, uma fragilidade nacional que era obra da nação inteira. O século XIX foi o século em que pela primeira vez os portugueses (alguns) puseram em causa, sob todos os planos, a sua imagem de povo com vocação autónoma tanto no ponto de vista político como cultural. Que tivéssemos merecido ser um povo, e povo com lugar no tablado universal, não se discutia. Interrogávamo-nos apenas pela boca de Antero e de parte da sua geração, para saber se éramos ainda viáveis, dada a, para eles, ofuscante decadência. Curiosamente, o exame de consciência parricida intentado ao ser nacional tinha lugar na altura mesma em que Portugal se religava, com um êxito, a essa Europa, exemplo de civilização, cuja comparação connosco nos mergulhava em transes de melancolia cívica e cultural, tais como a obra de Eça os exemplificará para o nosso sempre. Nem Herculano, nem Garrett haviam sentido assim a decadência que também não lhes fora estranha. Entre a juventude de ambos e a da geração de Antero há a revolução industrial e a não menos prodigiosa revolução cultural do século XIX de que receberemos reflexos ou restos não desprezíveis (o criticismo patriótico da geração de Setenta faz parte deles) e com eles a consciência, por assim dizer física, do que nos separava da maiusculada e então orgiástica Civilização. Começou então a doer-nos não o estado de Portugal, as suas desgraças ou catástrofes políticas, mas a existência portuguesa, pressentida, descrita, glosada , como existência diminuída, arremedo grosseiro da existência civilizada, dinâmica, objecto de sarcasmos e ironias, filhos do amor desiludido que se lhe votava. Para fugir a essa imagem reles de si mesmo (choldra, piolheira) Portugal descobre a África, cobre a sua nudez caseira com uma nova pele que não será apenas imperial mas imperialista, em pleno auge dos imperialismos de outro gabarito. A tentativa de recriar uma alma à século XVI não foi longe: um excesso de lógica nas suas ambições, legítimas mas incómodas, ministraria ao mundo europeu a prova absoluta da nossa absoluta subalternidade. O Ultimatum não foi apenas uma peripécia particularmente escandalosa das contradições do imperialismo europeu, foi o traumatismo-resumo de um século de existência nacional traumatizada. Podia imaginar-se que confrontados com tão dura lição viéssemos a reconsiderar um estado de abatimento e um comportamento de fuga complementar dele». In Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.

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