«(…) Passado o momento da aflição patriótica, percorrido até ao absurdo o
labirinto sem saída da nossa impotência, voltámos à costumada e agora voluntária
e irrealística pose de nos considerarmos, por provincianice incurável ou
despeito infantil, uma espécie de nação idílica sem igual. O fim do século XIX,
por reacção ao criticismo devastador e impotente da década de Setenta, mas também
como resposta à agressão do monstro civilizado (Inglaterra) verá eclodir a mais
nefasta flor do amor pátrio, a do misticismo nacionalista, fuga estelar a um
encontro com a nossa autêntica realidade, mas, ao mesmo tempo, expressão profunda
sob a sua forma invertida, de uma carência absoluta que é necessário compensar
desse modo. O Saudosismo será, mais tarde, a tradução poético-ideológica desse
nacionalismo místico, tradução genial que representa a mais profunda e sublime
metamorfose da nossa realidade vivida e concebida como irreal. Mas nesse final
de século a própria ideologia republicana se alimentou do ultranacionalismo da
impotência gerado pelo Ultimatum. A república, conjunto de proposições políticas
de subversivo teor ideológico mas de reduzido âmbito social, aparece então como
a forma de apropriação de um destino colectivo confiscado, como então se
escrevia, pela casa de Bragança, a monarquia liberal onde se enxertara também a
pouco dinâmica burguesia nacional (e internacional). Poucos períodos da nossa
História foram tão patrióticos como aquele que a República inaugurou. O patriotismo
fora a sua arma ideológica antes do triunfo, seria a sua justificação permanente
após 1910, como se pela segunda vez (a primeira fora em 1820) os Portugueses
tivessem uma Pátria, aquela mesma que em música e palavras se definira na
Portuguesa, como heróis do mar, nobre povo, nação valente. O famoso idealismo
da República foi sobretudo patriotismo, este patriotismo como voluntária
exaltação da entidade nacional regenerada pela supressão dos seus maus pastores
e restituída ao povo, que Guerra Junqueiro, à sombra do último Oliveira Martins,
converteu em criança heróica, penhor da ressurreição colectiva. Escusado será
dizer que uma vez mais este patriotismo mascarava, com muito mais intensidade,
a consciência sempre viva de uma desvalia nacional que o espectáculo político
do parlamentarismo demagógico só podia confirmar. A cobertura ideológica de vanguarda
escondia mal o mesmo país cauda da Europa, escoando-se nas suas obras vivas
para Brasis, Argentinas, e Áfricas e incapaz de remediar em casa males de fundo
que nenhum demagogismo liberal podia concertar.E assim tocámos o que o regime
posterior chamaria o fundo do abismo, para justificar os processos com
que, de intenção confessada, quis libertar-nos dele. Processos drásticos, regresso
maciço da antiga e indiscutível autoridade majestática do Estado, mas sob a
forma violenta do totalitarismo, pois sem ele não era possível recusar em bloco
a herança de cento e poucos anos de tradição liberal. Era esse o preço a pagar
para reajustar o País a si mesmo? Esse foi o desígnio e a pretensão do Estado
Novo, curiosa mistura, em seus começos, de inegável sucesso, de arcaísmo e
vanguardismo. O patriotismo jacobino volve-se nacionalismo, forma de exaltação
da realidade nacional, não ao serviço do suspeito povo de tradição
rousseanista, mas de a Nação como totalidade orgânica, pessoa histórica, dotada
de direitos e deveres enquanto tal. A modernidade da reformulação é inegável,
como inegável é a sua sintonia com uma metamorfose do capitalismo ocidental que
está então após 1914 em vias de ultrapassar a sua fase ascendente e selvagem,
em termos de puro liberalismo, para aquela que a crise de 1929 tornará
imperativa. O papel impossível que em países de capitalismo subalterno como o nosso
as grandes empresas não podem assumir sós, será assumida por a Nação, quer
dizer, o Estado salazarista como elemento protector, e em parte dinâmico, da
nossa incipiente indústria.A resposta de Salazar, resposta ideológica e técnica
a um liberalismo incapaz de fazer funcionar o próprio sistema,continha
elementos próprios para lhe assegurar longa vida. Não era, não foi a resposta,
mas colocou o acento dela no campo onde devia e tinha de ser dada:o campo
social. Por mais escandalosa que a fórmula pareça, o corporativismo foi já uma forma
Socializante, mas de um socialismo envergonhado e contraditório cuja
coerência histórica orgânica inegável funcionava para tornar viável o inviável
capitalismo caseiro. Concretamente, o salazarismo foi o preço forte que uma
nação agrária desfasada do sistema ocidental a que pertence teve de pagar para
ascender ao nível de nação em vias de industrialização. Desse processo e como
coroamento dele, constituirá a emigração em massa dos nossos aldeões asimbólica
e dura expressão final». In Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade,
Psicanálise Mítica do Destino Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN
978-972-662-765-4.
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