terça-feira, 10 de julho de 2018

O Labirinto da Saudade. Eduardo Lourenço. «Desse processo e como coroamento dele, constituirá a emigração em massa dos nossos aldeões asimbólica e dura expressão final»

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«(…) Passado o momento da aflição patriótica, percorrido até ao absurdo o labirinto sem saída da nossa impotência, voltámos à costumada e agora voluntária e irrealística pose de nos considerarmos, por provincianice incurável ou despeito infantil, uma espécie de nação idílica sem igual. O fim do século XIX, por reacção ao criticismo devastador e impotente da década de Setenta, mas também como resposta à agressão do monstro civilizado (Inglaterra) verá eclodir a mais nefasta flor do amor pátrio, a do misticismo nacionalista, fuga estelar a um encontro com a nossa autêntica realidade, mas, ao mesmo tempo, expressão profunda sob a sua forma invertida, de uma carência absoluta que é necessário compensar desse modo. O Saudosismo será, mais tarde, a tradução poético-ideológica desse nacionalismo místico, tradução genial que representa a mais profunda e sublime metamorfose da nossa realidade vivida e concebida como irreal. Mas nesse final de século a própria ideologia republicana se alimentou do ultranacionalismo da impotência gerado pelo Ultimatum. A república, conjunto de proposições políticas de subversivo teor ideológico mas de reduzido âmbito social, aparece então como a forma de apropriação de um destino colectivo confiscado, como então se escrevia, pela casa de Bragança, a monarquia liberal onde se enxertara também a pouco dinâmica burguesia nacional (e internacional). Poucos períodos da nossa História foram tão patrióticos como aquele que a República inaugurou. O patriotismo fora a sua arma ideológica antes do triunfo, seria a sua justificação permanente após 1910, como se pela segunda vez (a primeira fora em 1820) os Portugueses tivessem uma Pátria, aquela mesma que em música e palavras se definira na Portuguesa, como heróis do mar, nobre povo, nação valente. O famoso idealismo da República foi sobretudo patriotismo, este patriotismo como voluntária exaltação da entidade nacional regenerada pela supressão dos seus maus pastores e restituída ao povo, que Guerra Junqueiro, à sombra do último Oliveira Martins, converteu em criança heróica, penhor da ressurreição colectiva. Escusado será dizer que uma vez mais este patriotismo mascarava, com muito mais intensidade, a consciência sempre viva de uma desvalia nacional que o espectáculo político do parlamentarismo demagógico só podia confirmar. A cobertura ideológica de vanguarda escondia mal o mesmo país cauda da Europa, escoando-se nas suas obras vivas para Brasis, Argentinas, e Áfricas e incapaz de remediar em casa males de fundo que nenhum demagogismo liberal podia concertar.E assim tocámos o que o regime posterior chamaria o fundo do abismo, para justificar os processos com que, de intenção confessada, quis libertar-nos dele. Processos drásticos, regresso maciço da antiga e indiscutível autoridade majestática do Estado, mas sob a forma violenta do totalitarismo, pois sem ele não era possível recusar em bloco a herança de cento e poucos anos de tradição liberal. Era esse o preço a pagar para reajustar o País a si mesmo? Esse foi o desígnio e a pretensão do Estado Novo, curiosa mistura, em seus começos, de inegável sucesso, de arcaísmo e vanguardismo. O patriotismo jacobino volve-se nacionalismo, forma de exaltação da realidade nacional, não ao serviço do suspeito povo de tradição rousseanista, mas de a Nação como totalidade orgânica, pessoa histórica, dotada de direitos e deveres enquanto tal. A modernidade da reformulação é inegável, como inegável é a sua sintonia com uma metamorfose do capitalismo ocidental que está então após 1914 em vias de ultrapassar a sua fase ascendente e selvagem, em termos de puro liberalismo, para aquela que a crise de 1929 tornará imperativa. O papel impossível que em países de capitalismo subalterno como o nosso as grandes empresas não podem assumir sós, será assumida por a Nação, quer dizer, o Estado salazarista como elemento protector, e em parte dinâmico, da nossa incipiente indústria.A resposta de Salazar, resposta ideológica e técnica a um liberalismo incapaz de fazer funcionar o próprio sistema,continha elementos próprios para lhe assegurar longa vida. Não era, não foi a resposta, mas colocou o acento dela no campo onde devia e tinha de ser dada:o campo social. Por mais escandalosa que a fórmula pareça, o corporativismo foi já uma forma Socializante, mas de um socialismo envergonhado e contraditório cuja coerência histórica orgânica inegável funcionava para tornar viável o inviável capitalismo caseiro. Concretamente, o salazarismo foi o preço forte que uma nação agrária desfasada do sistema ocidental a que pertence teve de pagar para ascender ao nível de nação em vias de industrialização. Desse processo e como coroamento dele, constituirá a emigração em massa dos nossos aldeões asimbólica e dura expressão final». In Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.
                                                                                                                           
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