«(…) Mal podia sonhar o mestre que o discípulo se ria das suas lucubraçoes
alfarrábicas e tabacais. E verdade que para o consolar, o discípulo o
presenteara com um capote finíssimo de pano azul ferrete, gola de veludo, e forrado
de orleans, com seus cordões mui compridos, e borlas de retrós preto e tudo na maior
perfeição. Também lhe adoçara a boca com uma condeça de doces muito finos e primorosos,
uma pouca de anona muricata, duas excelentes maçãs e seis penas de escrever. E assim
fazendo progressos na língua latina, chegou D. Pedro ao fim de 1847. Emquanto estudava
o latim, dedicava-se também à música, à pintura e à história natural, colecionando
conchas e insectos afim de organisar um museu. Esta tendência para a coleccionação
acompanha-o ainda nos anos seguintes. Em 4 de Junho de 1851 escreve de Sintra a
Sarmento:
Consagrei a tarde a uma excursão
conchiliológica com o visconde, a qual me deu oito espécies que o mano Luiz lhe
mostrará.
E em 1855, já depois de Rei,
pede a Rodrigo da Fonseca que tenham cuidado com uns pássaros que vem do Chile para
ele a bordo do patacho Indústria. Foi chamado para organisar o museu Francisco Tomás
Silveira Franco, lente de medicina no Hospital de S. José. No dia 3 de Abril de
1848 dava D. Pedro a primeira prova pública do seu adiantamento nos estudos. Fazia
exame de latim perante a corte. Mas antes quiz ir à capela, onde naquele dia havia
lausperenne, para implorar o auxílio do Senhor, esclarecendo-lhe o
entendimento afim de fazer bom exame. E fê-lo bom na verdade, porque traduziu, com
desembaraço, um capítulo de Eutropio e uma fábula de Phedro. Tinha então onze anos
de idade e apenas seis meses de tradução latina. O resultado do exame foi sujeito
à votação dos presentes. Todos votaram, muito bem, ou muitíssimo bem, só
a mãe, sempre grave e austera, lhe concedeu simplesmente um Bem. Esta nota,
que a muitos parecerá indiferente, revela, contudo, fielmente o carácter da
Rainha. Altamente satisfeita com o exame do filho, gosta de que todos o
elogiem, mas para não o lisongear excitando-lhe a vaidade, e para se não mostrar
parcial, é quem lhe dá o voto menos laudatório. Bem; e nada mais. O professor
extasia-se perante os conhecimentos do discípulo e não se cança de lhe festejar
o talento e a aplicação:
A tal ponto chegava o amor
que Sua Magestade tinha aos livros latinos que achando-se doente de uma angina
na primavera de 1848, queria que lhe trouxessem os seus livros para a cama, e até
os guardava debaixo do travesseiro, onde eu mesmo os encontrava, e pedia a Sua
Magestade que tomasse descanço, porque não faltava tempo em que pudesse estudar.
Que hei de fazer?, disse Sua Magestade, hei de perder os meus estudos, deixando-me
atrasar? Esta mesma resposta dava a todos.
O velho professor tinha às
vezes adoráveis ingenuidades. Quando a Rainha, em 1848, deu à luz o príncipe Leopoldo,
Martins Bastos escrevia nas suas Memórias:
Sua Magestade El-rei, pela
sua edade e mais ainda pela sua inocência, nada disto empreendia, e somente pensava
que um menino, seu primo, estava chegando ou havia chegado da Alemanha.
Neste tempo, quando o primo chegava da Alemanha, já D. Pedro se ocupava
das aventesmas que povoavam o Paço. No princípio de 1849 D. Pedro traduzia as epístolas
de Cícero, e escrevia cartas em latim ao seu mestre, datadas de Sintra, uma do
segundo dia antes das Calendas de Agosto, de 1849, outra do quarto dia antes dos
idos de Julho, de 1850. Já conhecia Salustio, Tito Livio e Virgílio, e era
preciso dar-lhe mestre de grego, retórica, filosofia racional e moral e princípios
de direito natural. Veio continuar a educação do príncipe António José Viale, conhecido
humanista e perito nos estudos clássicos. No domingo antes do Natal de 1849, fez
o príncipe novo exame público de latim, de grego, de inglês, de música, e de
desenho. Manuel Inocêncio ensinara-lhe a música; a pintura o insigne artista António
Manuel Fonseca. Em 1850 D. Pedro já conhecia, além dos autores citados, Ovídio,
Horácio e Tácito, e em 23 de Dezembro fez o terceiro exame, assim descrito por
Martins Bastos:
Começou o exame pela
latinidade; El-rei traduziu magnificamente parte de um capítulo de Tito Lívio, aberto
à sorte por El-rei, seu pai; do mesmo modo um trecho de Virgílio na Eneida;
e uma ode inteira de Horácio, aberto tudo à sorte por El-rei, como fica dito. Não
é possível traduzir com mais propriedade e elegância, do que o fez Sua Magestade,
no que me enchi da maior glória, por ser aquele o último exame daquela disciplina
que Sua Magestade fez».
In Júlio de Vilhena, D. Pedro V e o seu Reinado, DP 664 V55 610415, 4
de 07 de 1955, Academia das Ciências de Lisboa, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1921.
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