«O calor era tão avassalador que apenas um
escorpião negro se aventurava na areia do pátio da prisão, que, perdida entre o
vale do Nilo e o oásis de Khargeh, a mais de cem quilómetros para oeste da
cidade santa de Carnaque, albergava os reincidentes que carregavam pesadas
penas de trabalhos forçados. Quando a temperatura o permitia, os prisioneiros
conversavam na pista que ligava o vale ao oásis, e era cruzada por caravanas de
burros transportando mercadorias. Pela décima vez, o juiz Paser apresentou o
seu pedido ao chefe do campo, um colosso sempre pronto a castigar os
indisciplinados. Não suporto o regime privilegiado de que beneficio. Quero
trabalhar como os outros. Esguio, bastante alto, de cabelos castanhos, face
larga e alta e olhos verdes acastanhados, Paser, cujos traços haviam perdido a
juventude, mantinha uma distinção que impunha respeito. Tu não és como os
outros. Sou um prisioneiro.
Mas não foste condenado. Estás aqui em
segredo. Para mim, tu nem existes. O registo não tem nome nem número de
identificação. Mas isso não me impede de partir pedras. Volta para o teu lugar.
O chefe do campo desconfiava deste juiz. Pois não tinha ele deixado o Egipto
inteiro boquiaberto, ao instruir o processo do famoso general Asher, acusado
pelo melhor amigo de Paser, o tenente Suti, de ter torturado e assassinado um
batedor, e de colaborar com inimigos de longa data, os Beduínos e os Líbios?
O cadáver do infeliz não fora encontrado
no local indicado por Suti. Os jurados, não podendo condenar o general,
contentaram-se em pedir um inquérito suplementar, investigação que gorou, uma
vez que Paser, caindo numa armadilha, fora acusado de assassinar o seu pai
espiritual, o sábio Branir, futuro sumo-sacerdote de Carnaque. Apanhado em
flagrante delito, fora preso e deportado, à margem da lei. O juiz estava
sentado à escriba na areia escaldante. Não parava de pensar na mulher, Néféret.
Durante muito tempo, julgara que ela nunca viria a amá-lo, depois, a felicidade
chegou, forte como o sol de Verão. Uma felicidade despedaçada, um paraíso de
onde fora expulso sem esperança
de regressar.
Levantou-se um vento quente que fazia os
grãos de areia rodopiar chicoteando a pele. Com um pano branco pela cabeça,
Paser não ligava ao vento, recordava as etapas do inquérito. Pequeno magistrado
de província, perdido na grande cidade de Mênfis, tivera o azar de se mostrar
demasiadamente consciencioso ao examinar em pormenor uma documentação algo
estranha. Descobrira o assassinato de cinco veteranos que formavam a guarda de
honra da grande esfinge de Gize uma carnificina disfarçada de acidente, o roubo
de uma grande quantidade de ferro celeste destinado aos templos, e uma
conspiração envolvendo altas personalidades. Mas não conseguira provar de forma
definitiva a culpa do general Asher e a sua intenção de destronar Ramsés, o
Grande. E, quando tinha finalmente conseguido obter plenos poderes para ligar
entre si os elementos dispersos, o azar batera-lhe à porta. Paser lembrava-se
de todos os momentos daquela noite terrível. A mensagem anónima avisando-o de
que o seu mestre Branir corria perigo, a corrida desvairada pelas ruas da
cidade, a descoberta do cadáver do sábio Branir, uma agulha de madrepérola espetada no seu
pescoço, a chegada do chefe da polícia, que não hesitou em considerar Paser um
assassino, a sórdida cumplicidade do deão do pórtico, o mais alto magistrado de
Mênfis, o seu transporte em segredo para a prisão e, quando o seu fim chegasse,
uma morte solitária sem que a verdade viesse a ser conhecida. A trama fora
organizada com a máxima perfeição. Com o apoio de Branir, o juiz poderia ter
investigado nos templos e identificado os ladrões do ferro celeste. Mas o seu
mestre tinha sido eliminado, tal como os veteranos, por misteriosos agressores
cujos fins continuavam obscuros. O juiz chegara à conclusão de que entre eles
figuravam uma mulher e vários homens de origem estrangeira, as suas suspeitas
recaíam sobre o químico Chéchi, o dentista Qadash e a mulher do transportador
Denes, homem rico, influente e desonesto, mas não tinha certeza de nada.
Paser resistia ao calor, às tempestades
de areia e à comida intragável, porque queria sobreviver, apertar Néféret nos
braços e ver a justiça florescer de novo. O que teria inventado o deão do pórtico,
seu superior hierárquico, para explicar o seu desaparecimento? E que calúnias
espalharia a seu respeito? Fugir, era uma utopia, ainda que o campo se abrisse
sobre as colinas vizinhas. A pé, não iria longe. Tinham-no mandado para ali, para que ali definhasse.
Quando estivesse fraco, consumido, quando tivesse perdido a última réstia de
esperança, divagaria, como um pobre louco repetindo incoerências. Nem Néféret
nem Suti o abandonariam. Recusariam qualquer mentira e qualquer calúnia,
procurá-lo-iam por todo o Egipto. Tinha de ser optimista e deixar o tempo
correr-lhe nas veias». In Christian
Jacq, A Lei do Deserto, O Juiz do Egipto, 1994, Bertrand Editora, 1996, ISBN
978-972-250-866-7.
Cortesia de
BertrandE/JDACT