sábado, 24 de novembro de 2018

Clérigos, Mercadores, Judeus e Fidalgos. António Borges Coelho. «Afirmámos já que o rei João I foi o chefe de Estado responsável pelo arranque da expansão marítima. Mas, indiscutivelmente, desde Ceuta que o infante Henrique…»

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Modelos da expansão portuguesa quatrocentista
Causas e contradições
«(…) Mas as causas objectivas e subjectivas interpenetram-se. A Geografia actua quando os homens sentem a atracção e desenvolvem técnicas com que vencem o medo do mar; as matérias-primas, o ouro e os escravos actuam quando se tornam conscientes nos motivos dos homens. Em sentido inverso, a fé precisa do suporte das cerimónias, das orações e das instituições para ter força e segurar o querer. Por outro lado, não é fácil distinguir as causas dos efeitos. A revolução dos transportes marítimos, por exemplo, constituiu causa e simultaneamente efeito dos Descobrimentos Marítimos. Tudo está ligado, tudo conspira, escrevia Leibniz. Por outro lado, os actos dos homens dos Descobrimentos reagem à totalidade viva da sociedade de que faziam parte e onde ferviam, se encadeavam e confrontavam agentes objectivos e subjectivos. No ponto de vista social actuavam na sociedade portuguesa do século XV duas dinâmicas que se opunham e casavam: a do mundo que assentava e vivia das rendas; e a do mundo que ganhava rápida e espectacularmente com o comércio dos produtos da pequena e média produção camponesa e artesanal, crescentemente assente em trabalho assalariado. Dir-me-ão que este simples formulário privilegia as condições objectivas. E assim é, pois pensamos com Marx e outros autores que, para que as condições subjectivas tenham sucesso ou até se formulem, é necessário que estejam maduras as condições objectivas.
A sociedade portuguesa no seu todo participou e foi marcada pelos Descobrimentos Marítimos. Mas socialmente o grupo determinante foi o que detinha o poder e saber de construir barcos e navegar no Mar Oceano, o que detinha a chave dos mercados, o que aumentava em caudal as rendas do rei, o que empregava e acumulava crescentes cabedais, que os navios e as equipagens não caíam do céu. A visão idílica dos Portugueses encarados como um todo unidos em torno de um chefe, de uma bandeira, de um projecto constitui uma visão ideológica que serve o poder presente mas é desmentida pelas lutas políticas fratricidas do século XV. Estas concepções têm o privilégio enganador de criar homens sem estômago e sem fezes e por isso nos mergulha a todos tantas vezes nas fezes colectivas.
A contradição mais fecunda na sociedade portuguesa de então opunha e unia a nobreza feudal cujos rendimentos e poder assentavam primeiramente na renda da terra e a burguesia dos cidadãos e homens-bons (agora criados, escudeiros, cavaleiros) cuja riqueza crescia com o comércio marítimo. Nos séculos XV e XVI os caminhos para a honra e a nobreza (para o poder) continuavam a ser abertos pela renda e pelo sangue, mas cada vez mais pela proximidade ou criação do rei, como expressamente refere João Barros, ou pelo dinheiro e a riqueza, apesar das inumeráveis páginas bíblicas contra o dinheiro e os ricos, pois é mais fácil passar um camelo pelo … de uma agulha do que um rico entrar no reino dos Céus? Esta contradição formula políticas opostas que por vezes desembocam no campo de batalha, como aconteceu em Alfarrobeira, mas que a longo prazo vai adiar a dureza de soluções internas, projectando os portugueses mais incómodos um pouco por todas as paragens do mundo.

Actores singulares e colectivos
Os agentes colectivos não apagam a acção dos homens concretos, particularmente dos dirigentes políticos. Afirmámos já que o rei João I foi o chefe de Estado responsável pelo arranque da expansão marítima. Mas, indiscutivelmente, desde Ceuta que o infante Henrique começa a emergir como o principal impulsionador das expedições e viagens a além-mar, em particular para lá do cabo Bojador. Alguns historiadores, glosando e ampliando as cinco razões de Zurara, acrescentaram, na determinação do infante, a inspiração ou oráculo divino. Inversamente, outros, baseados no parecer de 1436 e nos seus testamentos, onde não aparecem livros de carácter científico nem navios, nem instrumentos náuticos, tendem a apoucar o seu papel. Esboçou-se mesmo a ideia de exaltar a acção pioneira do infante Pedro em detrimento do seu irmão, o infante Henrique». In António Borges Coelho, Clérigos, Mercadores, Judeus e Fidalgos, Questionar a História, Colecção Universitária, Editorial Caminho, 1994, ISBN 972-21-0957-X.
                                                                                                                         
Cortesia da Caminho/JDACT