Modelos da expansão portuguesa quatrocentista
Causas e contradições
«(…) Mas as causas objectivas e subjectivas interpenetram-se. A Geografia
actua quando os homens sentem a atracção e desenvolvem técnicas com que vencem
o medo do mar; as matérias-primas, o ouro e os escravos actuam quando se tornam
conscientes nos motivos dos homens. Em sentido inverso, a fé precisa do suporte
das cerimónias, das orações e das instituições para ter força e segurar o
querer. Por outro lado, não é fácil distinguir as causas dos efeitos. A
revolução dos transportes marítimos, por exemplo, constituiu causa e
simultaneamente efeito dos Descobrimentos Marítimos. Tudo está ligado, tudo
conspira, escrevia Leibniz. Por outro lado, os actos dos homens dos
Descobrimentos reagem à totalidade viva da sociedade de que faziam parte e onde
ferviam, se encadeavam e confrontavam agentes objectivos e subjectivos. No
ponto de vista social actuavam na sociedade portuguesa do século XV duas
dinâmicas que se opunham e casavam: a do mundo que assentava e vivia das
rendas; e a do mundo que ganhava rápida e espectacularmente com o comércio dos
produtos da pequena e média produção camponesa e artesanal, crescentemente
assente em trabalho assalariado. Dir-me-ão que este simples formulário privilegia
as condições objectivas. E assim é, pois pensamos com Marx e outros autores
que, para que as condições subjectivas tenham sucesso ou até se formulem, é
necessário que estejam maduras as condições objectivas.
A sociedade portuguesa no seu todo participou e foi marcada pelos
Descobrimentos Marítimos. Mas socialmente o grupo determinante foi o que
detinha o poder e saber de construir barcos e navegar no Mar Oceano, o que
detinha a chave dos mercados, o que aumentava em caudal as rendas do rei, o que
empregava e acumulava crescentes cabedais, que os navios e as equipagens não caíam
do céu. A visão idílica dos Portugueses encarados como um todo unidos em torno
de um chefe, de uma bandeira, de um projecto constitui uma visão ideológica que
serve o poder presente mas é desmentida pelas lutas políticas fratricidas do
século XV. Estas concepções têm o privilégio enganador de criar homens sem
estômago e sem fezes e por isso nos mergulha a todos tantas vezes nas fezes
colectivas.
A contradição mais fecunda na sociedade portuguesa de então opunha e
unia a nobreza feudal cujos rendimentos e poder assentavam primeiramente na
renda da terra e a burguesia dos cidadãos e homens-bons (agora criados,
escudeiros, cavaleiros) cuja riqueza crescia com o comércio marítimo. Nos
séculos XV e XVI os caminhos para a honra e a nobreza (para o poder)
continuavam a ser abertos pela renda e pelo sangue, mas cada vez mais pela
proximidade ou criação do rei, como expressamente refere João Barros, ou pelo
dinheiro e a riqueza, apesar das inumeráveis páginas bíblicas contra o dinheiro
e os ricos, pois é mais fácil passar um camelo pelo … de uma agulha do que um
rico entrar no reino dos Céus? Esta contradição formula políticas opostas que
por vezes desembocam no campo de batalha, como aconteceu em Alfarrobeira, mas
que a longo prazo vai adiar a dureza de soluções internas, projectando os
portugueses mais incómodos um pouco por todas as paragens do mundo.
Actores singulares e colectivos
Os agentes colectivos não apagam a acção dos homens concretos,
particularmente dos dirigentes políticos. Afirmámos já que o rei João I foi o
chefe de Estado responsável pelo arranque da expansão marítima. Mas,
indiscutivelmente, desde Ceuta que o infante Henrique começa a emergir como o principal
impulsionador das expedições e viagens a além-mar, em particular para lá do
cabo Bojador. Alguns historiadores, glosando e ampliando as cinco razões de Zurara,
acrescentaram, na determinação do infante, a inspiração ou oráculo divino.
Inversamente, outros, baseados no parecer de 1436 e nos seus testamentos, onde
não aparecem livros de carácter científico nem navios, nem instrumentos
náuticos, tendem a apoucar o seu papel. Esboçou-se mesmo a ideia de exaltar a
acção pioneira do infante Pedro em detrimento do seu irmão, o infante Henrique».
In
António Borges Coelho, Clérigos, Mercadores, Judeus e Fidalgos, Questionar a
História, Colecção Universitária, Editorial Caminho, 1994, ISBN 972-21-0957-X.
Cortesia da
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