O
Cerco. 1147
Lisboa,
Junho de 1147
«(…) Feita a combinação que com
ele queria fazer, Mem dirigiu-se à casa onde, muitos anos antes, conhecera
Raimunda. Fora ali que reencontrara Sohba, a velha mulher de negro e estava certo
de que era lá que Raimunda e a Pústula se escondiam.
Cama conhecida, sempre preferida.
Estavam três feddayins à porta,
os últimos Mantos Vermelhos. A maioria dos assassins, vendo que a saúde de
Orimar se degradava e abominando Raimunda, tinha ido a Badajoz oferecer-se a Ibn
Wasir. Os três presentes, os mais dedicados, eram certamente os menos ferozes e
capazes.
Bom coração, falhas na mão.
Resguardado atrás de um muro, Mem
viu Raimunda vir à porta. A antiga esposa de Ismar mantinha os traços físicos, magra
e tensa, mas o aspecto geral alterara-se. Parecia imitar Sohba, de quem era neta.
Andava curvada, apresentava os cabelos desgrenhados e o manto que a cobria era velho,
negro e poeirento. Mas Mem conhecera Sohba, aquela pantomina era falsa. Ao contrário
da velha mas bondosa mulher de negro, Raimunda continuava odiosa, o olhar
gélido carregado de ira não enganava. Estava em Lisboa para matar Afonso Henriques.
Satisfeito, o antigo almocreve regressou ao casão e informou os companheiros de
que estava na hora de irem ao palácio de Zhakaria. Quando lá chegaram, pediram para
falar com o wali, que logo se enfureceu por ver ali Mem. Malik ainda
ergueu o alfange, mas o cavaleiro de Almourol deu um pronto grito: sei onde está
a vossa filha! Que dizeis?, balbuciou Zhakaria. Mem explicou-se, enquanto apreciava
o envelhecido governador. Os cabelos tinham-se acinzentado, as rugas multiplicado,
as olheiras aprofundado. Zhakaria já, não era o guerreiro implacável que Mem
conhecera. Algo se danificara dentro dele, uma sombra nascera no fundo dos seus
olhos.
Amor a morrer, alma a enegrecer...
Fátima fora a luz do mundo de Zhakaria,
a labareda viva que dera sentido à sua existência, e o sofrimento da princesa amada
diminuía-o. Mas a raiva ainda existia dentro dele. Devia cortar-vos a cabeça!, rosnou
Zhakaria. Mem enganara-o, visitara-o em Santarém fingindo preocupações falsas, só
para vistoriar as fraquezas da cidade. Estes nem dão luta..., incentivou Malik.
O antigo almocreve deixara as armas em casa, para melhor convencer o wali das suas
boas intenções, mas temeu não ser capaz de conter tanto ódio. Em silêncio,
amaldiçoou Giraldo, a besta à solta. Nunca desejara ferir Fátima, por isso
apresentou um pedido de desculpas. Morremos quando Alá quer, ripostou Zhakaria.
Não estava interessado em pedir satisfações pelo engodo. Guerra era guerra, teria
feito o mesmo. A sua única preocupação era a filha. Seria possível trazê-la para
Lisboa? A minha mulher quer vê-la, antes de morrer. Mem explicou que a menina estava
bem, mas não a podia entregar aos pais. Afonso Henriques jamais aceitaria devolver
a criança antes de as lutas terminarem em Lisboa.
O que quer o vosso rei?, perguntou
o arguto Zhakaria, que relembrou não ter autoridade na cidade. Se o conselho de
notáveis entregasse Orimar, Raimunda e a Lança, disse Mem, os cristãos não saqueavam
a cidade. E deixam partir os governantes com vida. Abu Zhakaria meditou em
silêncio, medindo as implicações da proposta. Depois, perguntou: Afonso
Henriques está convencido de que é fácil conquistar Lisboa?
Amargurado, concedeu que perdera a
sua Santarém quando propusera umas tréguas ao rei de Portugal. Desde essa data,
passara a ser olhado de lado pelos muçulmanos. Muitos homens recusaram-se a combater
nas suas fileiras e por isso Santarém ficara exposta e enfraquecida. Mas Lisboa
não. Têm mais de quinze mil soldados a defendê-la, os cristãos vão morrer como moscas!,
exclamou. Mem concedeu que a luta seria imprevisível. Contudo, relembrou que um
padrão se repetia na Andaluzia. Sem os africanos para os ajudar, os muçulmanos da
Hispânia perdiam as guerras. Afonso VII estava a chegar a Almeria e Afonso Henriques
encontrava-se às portas de Lisboa. A quem ireis pedir reforços? A Ibn Wasir? A Ibn
Qasi, de quem ninguém gosta?, questionou Mem». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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