A
Criada do conde Henrique. 1147
Coimbra,
Outubro de 1147
«(…) Mal o conde morreu, a
maldosa dona Urraca acusou Egas Moniz de ter trocado o aleijadinho Afonso
Henriques por Lourenço Viegas, dizendo que o milagre que curara as enfermidades
do menino era uma invenção! Para se proteger contra a eventualidade de alguém
descobrir o seu bastardo secreto, que sabia afinal vivo, pois o conde lho
dissera no auge da discussão, a rainha Urraca lançou uma cortina de fumo que
sujava a reputação do conde Henrique, de dona Teresa e do pequeno Afonso
Henriques. Que maldade!, indignou-se Chamoa. Apesar dos veementes desmentidos
de Egas Moniz, o objectivo da velhaca Urraca fora atingido. A intriga
de Compostela, colou e uma desconfiada dona Teresa nunca mais apreciou
o filho com os mesmos olhos. Com um suspiro piedoso, Afonso VII recordou: a
minha tia Teresa sempre suspeitou de que Afonso Henriques não era seu filho.
Decerto, por isso, nunca o amou.
O que nenhuma das duas irmãs
soube é que, antes de falecer, o moribundo conde Henrique se confessara a
Martinho Soure, que lhe dera a extrema-unção e ouvira dele um desejo final.
Temendo que dona Urraca descobrisse o esconderijo do bastardo, o conde Henrique
pediu ao pároco de Cárquere que entregasse o menino a um nobre da sua confiança.
Quem era esse portucalense?, perguntou Chamoa. Afonso VII suspirou, antes de
responder: o vosso primeiro marido, Paio Soares. O coração da minha cunhada
quase explodiu e ela sentiu-se invadida por um mal-estar doloroso. Ramiro, o
bastardo do seu primeiro marido, supostamente gerado num encontro deste com uma
deslavada soldadeira, não era afinal filho dele, mas sim da rainha Urraca?
Atarantada de perplexidade,
balbuciou: o meu primeiro marido sabia quem era a mãe de Ramiro? Afonso VII
admitiu essa possibilidade. Após os obscuros acontecimentos de Astorga, o
alferes Paio Soares afastara-se para o seu castelo, na Maia, temendo a fúria
vingativa de dona Urraca. - Vosso marido só regressou à corte portucalense
depois da morte de minha mãe, recordou o imperador. Tinha medo dela. Portanto,
o seu meio-irmão Ramiro, filho de dona Urraca, vivera anos como bastardo de
Paio Soares. E o único que conhecia esta verdade era Martinho, o pároco de
Cárquere e mais tarde de Soure. Quem vos contou tal coisa?, perguntou Chamoa. O
imperador esclareceu-a: como sabeis, o padre Martinho foi torturado e morto pelo
príncipe Ismar, em Córdova. Foi este quem me contou a verdade sobre Ramiro,
quando veio a Toledo falar comigo. Curiosamente e a partir desse dia, Afonso
VII desinteressara-se da intriga de Compostela. Afinal, Afonso Henriques
nunca fora trocado por Lourenço Viegas, escusava de tentar miná-lo com essa
falsa trapaça! Subitamente amputado da arma política com que tentara denegrir o
primo portucalense, esquecera o assunto até porque julgava o seu meio-irmão
Ramiro já morto. Só em Abril deste ano soube que ainda vivia, adiantou Afonso
VII.
Alguém viera a Toledo, informá-lo
de que o antigo templário se encontrava em Lisboa, onde usava o falso nome de
Orimar. O morto-vivo?!, aterrou-se Chamoa. O imperador acalmou-a, garantindo-lhe
que o seu espião já regressara a Lisboa, com ordens para matar Ramiro. Afonso
Henriques sabe disso?, perguntou ela. Afonso VII abanou a cabeça, era óbvio que
não. Por fim, com um sorriso malicioso, perguntou se ela não desejava saber
quem era a misteriosa criada do conde Henrique. A mulher que foi ao Mosteiro de
Cárquere?, perguntou Chamoa. Divertido, Afonso VII contou que, em Astorga,
ainda havia quem se recordasse de uma antiga criadita que aos vinte anos
abandonara o castelo dias depois da morte do conde Henrique. O seu nome era Ana
Justa, ironizou o imperador. A vossa ama.
Dona Justa era a criada do conde
Henrique, a mulher que fora a Cárquere deixar e buscar Ramiro, o bastardo de
Urraca! Chamoa nem queria acreditar: a única depositária viva dos segredos do
conde Henrique estivera sempre perto dela, cuidando dos seus seis filhos! Virgem
Santíssima..., murmurou, atordoada. Depois de a deixar recuperar a calma, o
imperador puxou-a e começou a tocá-la nos seios. Contara-lhe tudo, agora queria
mais. E, apesar de atarantada com o que soubera, Chamoa deu-se, pois sentia-se grata.
Ele merecia, revelara-lhe a intriga de Compostela. Quando, já no final
de Setembro, a minha cunhada regressou a Coimbra, chamou a ama e contou-lhe o
que descobrira. Porque nunca haveis falado comigo?, perguntou. Dona Justa,
sempre serena, suspirou. Até hoje, ninguém me perguntou nada. Depois, confirmou
que quase quarenta anos antes ajudara dona Urraca a dar à luz o bastardo, em
Astorga, após o que fora a Cárquere com o conde Henrique depositar Ramiro,
voltando lá passados três anos, para o levantar e entregar nas mãos de Paio
Soares. O conde Henrique, Martinho de Soure e o vosso primeiro marido sempre
confiaram em mim». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das
Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
Cortesia da CasadasLetras/JDACT