«(…) O olhar do nobre aguçou-se. Como assim? A meu ver, não são
meros símbolos, mas anjos de verdade. Sua função de controladores do tempo lembra
o poder de Aion, divindade pagã da æternitas.
Como a ele, também aos anjos foi confiada a função de administrar o tempo, os
dias e as estações. De que modo?, perguntou Uberto. Girando as esferas celestes,
explicou o mercador, lançando um olhar significativo ao rapaz. O deslocamento
do Sol e da Lua provoca a sucessão do dia e da noite, do calor e do frio. Scalò
coçou o queixo com ar pensativo. De repente, pegou Ignazio pelo braço, como a
um companheiro de taberna, e levou-o de volta ao interior da basílica.
Virando-se para Uberto, exclamou: meu jovem, permita que o deixemos por um
minuto. Tenho algumas questões a discutir em particular com o seu mestre. Volto
logo, Uberto, tranquilizou-o o mercador. Enquanto isso, visite a basílica. O
jovem concordou com um aceno de cabeça, sem dizer palavra alguma. Os dois
homens se dirigiram para a capela-mor e desceram à cripta. Nenhum deles notou
que havia uma figura postada na galeria superior, muito alta, vestida de preto,
com um chapéu de abas largas baixado sobre o rosto. Por várias vezes se aproximara
do parapeito de mármore para espiar os três homens. Só Willalme vira aquele homem
espreitando no vestíbulo.
Decidido a segui-lo, o francês subira ao piso superior da
basílica; mas, ao chegar à galeria, perdera-o de vista. Aonde teria ido?
Uberto, de onde estava, poderia tê-lo visto: bastaria voltar-se na direcção do
coro para surpreendê-lo deslizando na penumbra até um acesso à cripta, oposto
àquele por onde entraram Ignazio e Scalò. Mas o jovem estava olhando para o
outro lado. A cripta se subdividia em três naves, uma central, muito grande, e
as laterais, menores. Sólidas arcadas de curva fechada sustinham o tecto e se
apoiavam em colunas de mármore ou contra as paredes. A luz das candeias se
insinuava com dificuldade por entre os blocos de pedra húmida, criando formas
sinuosas na sombra dos nichos.
O local era como um grande órgão palpitante. As abóbadas
fremiam como membros gigantescos bloqueados por uma apneia eterna e sufocante. Quanto
mais Ignazio inspirava, mais necessidade sentia de ar. Atribuiu aquele
mal-estar à inquietação: a lembrança de Rainerio de Fidenza e do espectral
Scipio Lazarus, implicados ambos no homicídio do abade Maynulfo, continuava a
atormentá-lo. Olhou em volta, a fronte banhada de suor. Outrora viera ali com
outra disposição de ânimo, para admirar os tesouros guardados no ventre de
pedra da basílica. Divertira-se a observar os raios de luz que vinham de fora e
brincavam ao longo das paredes como dedos de crianças curiosas. Mas agora tudo
era diferente. Ao lado de Scalò, percorreu a nave ocidental até o centro da
cripta. Naquele local, os raios do sol penetravam pela abertura da capela-mor,
rompendo a escuridão. A cripta está quase sempre fechada. A voz do conde ecoou
pelas arcadas do tecto.
Consegui que permanecesse aberta para nós, para que pudéssemos
conversar à vontade. Finalmente, vai revelar-me o motivo de eu ter sido
convocado de tão longe, disse o mercador. Eu o farei, mas primeiro diga-me o
que mais sabe sobre os anjos. A expressão de Ignazio revelou pela primeira vez
um sinal de impaciência. Isso tem importância? Muito mais do que imagina,
respondeu o conde, olhando-o com gravidade. O mercador ignorava o sentido
daquele discurso, mas respondeu de modo vago para sondar o terreno em que
estava pisando. Acedeu aos preceitos de Isidoro de Sevilha e Santo Agostinho,
isto é, da cultura canónica. A palavra de origem grega anjos, melachim em hebraico, significa mensageiros, isto é,
intermediários entre Deus e os homens. Os sábios de Harran referem-se a eles
com um termo muito parecido, malaika.
Segundo as Escrituras, dividem-se em nove ordens, mas também Platão admite a
existência de criaturas muito semelhantes no céu, os daemones. Que mais?, insistiu Scalò. O mercador franziu a
testa. Pessoalmente, encontrei algumas semelhanças entre os arcanjos e os Amerta Spenta, os Santos Imortais
adorados pelos magos persas... Mais exactamente, o que deseja saber, meu senhor?»
In
Marcello Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene
Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.
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