«(…) Um silêncio fúnebre tomou conta
do ambiente. A vocação funerária de Roncesvalles influía na mente das pessoas.
O padre olhava-o fixamente, como se através dele visse um bando de demónios,
mas tinha a fisionomia de quem ocultava alguma coisa. Por que o demónio era o
culpado por aqueles crimes? O demónio tinha meios mais eficazes de impedir a
ajuda aos peregrinos. Maurício olhou para o sacerdote com firmeza: por acaso o
senhor saberia se o padre Augusto disse alguma coisa antes de morrer? O oficial
olhou para ele, furioso: como se atreve a fazer essa pergunta a uma autoridade
eclesiástica respeitada no meu país? Posso prendê-lo por desacato. É o senhor
quem está sendo interrogado e esses seus comentários são suspeitos e
inoportunos. Peço mil perdões, comandante. Virou-se e começou a sair quando
ouviu a voz do detective: desculpe, mais uma vez, comandante, mas quem está
conduzindo a investigação aqui sou eu e essa questão é interessante. E, sem
esperar qualquer comentário: as suas observações são embaraçosas. O nosso prior
é um homem muito respeitado. Então, primeiramente, gostaria que esclarecesse a
acusação de que o abade Anselmo está escondendo
alguma coisa. Caso, porém, ele tenha algo que possa interessar às investigações
é claro que tem a obrigação de fazer isso.
O
abade estava nervoso. Maurício aproveitou a interferência do detective e
insistiu: padre, não foi o senhor quem atendeu o padre Augusto logo após o
grito dele, foi? O prior respondeu depressa, como se com a sua resposta pudesse
livrar-se de mais esclarecimentos. Não, foi o padre Juliano, que dorme no
quarto ao lado. O meu é mais afastado. Ele abriu a porta, viu o padre Augusto
naquele estado e veio correndo avisar-me, mas quando cheguei, ele já estava a morrer.
Era pouco mais da meia-noite.
Lembrou-se
da mulher que se levantara durante a noite no albergue. Ele olhara no relógio e
faltavam alguns minutos para a meia-noite. Todas as camas estavam ocupadas e,
portanto, o comandante tinha razão. Nenhum peregrino que estivesse dormindo no
albergue podia ser o assassino. Entendo, entendo. E Maurício comentou, com
aparente displicência: imagino o esforço e o sofrimento do padre Augusto para
lhe dizer as suas últimas palavras. O senhor poderia repeti-las? O abade reagiu
como se tivesse ficado perturbado com a pergunta: eu não disse isso. O senhor
está colocando palavras na minha boca e isso é um insulto. O comandante tem
razão.
Mas
Maurício não deu tempo para o comandante falar nada, ainda porque talvez ele
não se atrevesse, diante das interferências anteriores do detective. Padre
Anselmo, melhor do que todos nós, aqui presentes, o senhor sabe que Deus quer a
verdade. É preciso capturar esse assassino antes que ele cometa outros crimes.
Não precisa dizer na minha frente, se preferir, mas diga depois às autoridades
as últimas palavras do padre Augusto. Fez um movimento de despedida com a
cabeça e ia saindo, quando ouviu: a prata não pode reflectir a luz foi só o que
falou antes de morrer. Mas o senhor não declarou isso para nós, admoestou-o o
oficial, indignado porque o padre estava passando para um estrangeiro uma
informação que deveria ser sigilosa. O senhor não me perguntou, respondeu o
padre, bastante nervoso.
O
detective mostrou novamente a sua
habilidade na busca dos objectivos. Comandante! Mais tarde conversaremos sobre isso. E, voltando-se para Maurício: essas
palavras trazem algum significado para o senhor? Estava envolvendo-se demais
naquele assunto, mas já não havia retorno. Acho
que esse assassino tem uma missão a cumprir e não é matar padres, a não ser que
eles interfiram, ainda que involuntariamente, nessa missão. Talvez o padre
Augusto soubesse de alguma coisa. Provavelmente estava no lugar errado e viu ou
ouviu o que não podia ser passado adiante. Na
minha opinião, o espanhol era um dos alvos dessa missão, não o padre. O oficial parecia mais humilde e o detective olhava-o
como se esperasse mais informações. Entendeu o
silêncio do polícia, que lhe pareceu bastante perspicaz e falou: ao que sei, a menina também morreu. Se o pai a puxava no burrico, é
porque ia na frente. Então, pelo que deduzo, o assassino esperou o animal
passar e deu-lhe um golpe na perna direita traseira, que pela lógica devia
estar na beira do declive. O assassino deve ter previsto que, com a dor e o
susto, o animal pularia, pondo a vida da menina em perigo, e que a preocupação
instintiva do pai seria com ela. Era o tempo que precisava para atingi-lo. As suas deduções eram lógicas e os outros não contestaram. Por isso penso que essa arma não foi feita para matar o padre, mas,
sim, para cortar a perna do burrico e em seguida para matar o homem. Seria
interessante saber se ele molestou a menina. Isso lhe daria material para
estudar o perfil do assassino». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra,
Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.
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