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As
Princesas de Córdova. Silves, 1145
«(…) Filha, bico calado!
Se o marido ouvisse falar em Mem,
nem a deixaria sair de Silves, quanto mais ir a Córdova! Tinha de chegar até lá
em silêncio, aguentar o que via à sua frente com inquietação crescente. A
cidade transbordava de soldados malcriados, que assustavam as mulheres
solteiras, as casadas e mesmo os maridos destas. Havia tensão e confusão,
contudo, não era essa a sua maior preocupação.
Filha, cuidado, IbnWasir é um
impostor.
O marido gabava os feitos do
farsante de Mértola, mas ela não dissipara os receios. Lembrava-se dele,
baixote e falsete, cheio de salamaleques parvos e dúvidas religiosas. Ismar era
mais rico do que Ibn Qasi, facilmente compraria a lealdade do asqueroso senhor
de Mértola. Porém, o marido confiava no alcaide. Unidos seremos invencíveis!,
exclamara Ibn Qasi. Quanto mais o sufi se iludia, mais Zaida temia o
pior. Ibn Wasir facilmente os venceria, se passasse para o lado de Ismar. Ou,
pior ainda, podia conquistar Córdova, tornando-se o senhor da capital.
Filha, nunca deixeis sozinha a vossa
filha.
Pegou em Maryam ao colo e deu-lhe
um beijo. Ia levá-la, não aceitaria deixá-la em Silves. Inquieta, dirigiu-se às
cozinhas, entregou a menina às criadas e rumou à sala onde o marido lia, muito
concentrado. A barba dele estava bem aparada, decerto um criado a cortara nessa
manhã.
Filha, parece outro homem...
Zaida suspirou. Houve tempos em
que o considerara bonito, mas agora achava-o feio, agressivo e consumido. O
delírio bélico e religioso envelhecera-lhe o rosto. Quando partimos?, perguntou
ela. Ibn Qasi ergueu a cabeça, mas não lhe sorriu. Outra coisa que há muito não
fazia. Em breve. Vamos para Mértola, ao encontro de Ibn Wasir, adiantou Qasi,
resmungando de seguida: infelizmente, ele não atacou Badajoz! E julgais que irá
até Córdova?, perguntou Zaida. Ibn Qasi acenou com a cabeça, todo ele
convicção. Com os dele, somamos cinco mil homens. São suficientes para tomar o
Azzahrat de surpresa. Zaida fechou os olhos. O marido falava como se a guerra não
fosse imprevisível, nem o inverno caprichoso. Os exércitos deles iam passar
perto de Sevilha sem serem vistos? Que tolice! Ismar era o senhor da Andaluzia,
os aliados sevilhanos não o iam abandonar. A estrela de Ismar empalideceu,
continuou Ibn Qasi.
Presta tributo ao imperador
cristão, os muçulmanos andaluzes já não acreditam nele. Ibn Wasir considera-o
um frouxo! Sempre desconfiada, Zaida insistiu: confiais no alcaide de Mértola? O
sufi não lhe chegou a responder, pois entraram na sala os seus
ajudantes. Nunca mais falaram de guerra, nem durante a viagem para Mértola. Na gaziva,
junto à filha e às escravas, Zaida foi apreciando as paisagens, com a certeza aguda
de que era cedo de mais para tomarem Córdova.
Filha, vai ser uma desgraça!
Os soldados falavam,
entusiasmados, da piscina de mercúrio do Azzahrat, onde se iriam espelhar, e
foram envoltos nesse entusiasmo tolo que chegaram a Mértola, onde Zaida se
espantou com a vastidão das tropas de Ibn Wasir.
Filha, o emir tem menos
guerreiros do que o alcaide?
No dia seguinte, compareceu num
repasto, oferecido pelo anfitrião da cidade. Zaida vestiu um belo alifafe,
laranja e transparente, mas quando entrou no palácio de Mértola, o mesmo onde
estivera seis anos antes, teve a estranha sensação de que a sua situação não
melhorara quase nada. E a sua incomodidade só aumentou, quando Ibn Qasi lhe
gritou: que vestes são essas? Sem hesitar, o marido ordenou-lhe que se tapasse,
caso contrário regressaria de imediato à tenda! E o sempre acanalhado alcaide
de Mértola adiantou, com óbvio gozo: posso oferecer-vos o manto de uma escrava!
Furiosa, Zaida deu meia-volta e retirou-se da sala, regressando à sua tenda,
onde, quando a noite caiu, apareceu Ibn Qasi. Em tom solene, disse-lhe que
jamais perdoaria a vergonha por que o fizera passar. Só não a mandava de volta para
Silves porque precisava dela em Córdova. Quando chegar à cidade, será a mim que
o povo respeitará!, ripostou ela, irritada». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
Cortesia da CasadasLetras/JDACT