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Castelo
de Montmerle. Região da Borgonha. 25 de Julho de 1094
«(…) Ernaud era dois anos mais
velho do que eu e tinha uma cabeleira farta, de cor alaranjada, que lhe dava um
certo ar de inocência. A sua pele era coberta de sardas e tinha uns olhos
grandes e castanhos. Era filho de Gerverto Aurillac, um canteiro que trabalhava
nas obras do mosteiro de São Pedro. O conde de Montmerle, meu pai, desenvolvera
um afecto especial por ele porque, três anos antes, me tinha salvado a vida ao
retirar-me, exausta, do rio em que eu tinha caído acidentalmente e no qual me
teria afogado se não fosse o arrojo daquele rapaz. Desde então, o meu pai
passou a tratá-lo como a um filho, e, o que era mais importante para mim, a deixar-me
participar nas suas brincadeiras de miúdo e a permanecer na sua companhia,
acabando assim com o tédio terrível que me invadia durante os longos dias em
que não tinha mais o que fazer senão bordar, ler textos em latim em livros
aborrecidos e impossíveis de compreender e desenhar letras em pedaços de pele
gordurosa que me eram dados por Munia que, desde o casamento com o meu pai, se
tornara a minha mestra. No entanto, passado o tempo da infância, tenho de
reconhecer que foi graças ao esforço daquela mulher e à sua paciência infinita
que aprendi a ler e a escrever correntemente em latim, a bordar os tecidos mais
delicados com arte e a fazer cálculos mentais com os jogos de números que
também ensinava a Ernaud.
Quando saímos do castelo, o silêncio
letárgico era quebrado apenas pelo zunido contínuo e estridente das cigarras,
que parecia advertir-nos para a canícula insuportável. Percorremos as duas
léguas que nos separavam do mosteiro de São Pedro, um cenóbio que se encontrava
sob a protecção do condado de Montmerle desde a sua origem. Passámos dias a
planear a forma de entrarmos sem sermos vistos na igreja de S. Tiago um pequeno
oratório que, aquando das obras de ampliação, tinha ficado fora do recinto do
grande claustro, já na fase dos acabamentos e no qual se tinha erguido um
grande templo, digno da comunidade que já vivia no cenóbio, para além das
restantes dependências monacais, de acordo com as estritas regras de construção
beneditinas. A igreja de S. Tiago fora a origem do mosteiro. Mandada construir havia
mais de trezentos anos por um dos primeiros condes de Montmerle, encontrava-se
num estado de conservação lamentável e Gerverto Aurillac dedicara os três meses
anteriores a trabalhos de restauro para a manter de pé. É que o pai de Ernaud gostava
daquela capela, que já não era utilizada para nenhuma liturgia. Fizera aqueles
trabalhos por sua conta, já que nem o abade, nem muito menos o meu pai, estavam
dispostos a pagar uma moeda que fosse para salvá-la da ruína em que se
encontrava. Gerverto tinha chegado a um acordo com o abade Edgardo: todos os
dias poderia dedicar o final da jornada a remodelar e escorar os periclitantes
muros da capela sem cobrar nada. Quem o ajudava nessas tarefas era Ernaud, o
único disposto a trabalhar sem receber. O pai estava a ensinar-lhe o ofício,
mas o sonho dele era tornar-se cavaleiro, pois o meu pai tinha-lhe metido na
cabeça que o faria seu escudeiro quando completasse quinze anos de idade e, se visse
que tinha valor, armá-lo-ia cavaleiro. A perspectiva de vir a ter espada e
cavalo parecia-lhe mais emocionante do que passar a vida a aparelhar pedra e a erguer
muros, apesar da paixão que o seu pai lhe transmitia quando lhe falava do
oficio de canteiro.
Alguns dias antes, ao levantarem
o chão de uma das naves laterais, tinham descoberto um alçapão de madeira
escondido sob as lajes de pedra. Custara-lhes muito levantá-lo mas, quando o
conseguiram, depararam-se com uma pequena cripta escavada na rocha. O pai
decidiu manter em segredo a descoberta daquele túmulo subterrâneo e obrigou-o a
prometer que não falaria daquilo a ninguém. Ernaud não pôde aceder ao interior porque
o pai lho proibiu, pelo que teve de ficar à espera, de vigia, circunstância que
lhe despertou uma curiosidade quase obsessiva pelo subterrâneo. Quando me
propôs a estranha visita, aquilo pareceu-me uma aventura fascinante. Porém,
obrigou-me a dar-lhe a minha palavra em como não falaria dela a ninguém. Será o
nosso segredo, Mabilia. Ninguém deve ficar a saber da existência desse lugar.
Promete-me que não dizes a ninguém! Será o nosso segredo, confirmei. Promete!,
insistiu. Prometo-te que não falarei disto com ninguém. Nem com Orengarda ou
com Munia... Com ninguém! - atalhei, com um gesto irritado e completamente segura
do que lhe dizia.
Ernaud era meu amigo e eu jamais
o trairia! O meu pai ensinara-me pouca coisa ao longo da minha vida, mas eu
aprendera com ele que um homem sem palavra não era verdadeiramente um homem, e,
apesar de ser menina, assumi o dever de fidelidade para com aqueles que gostavam
de mim e Ernaud era uma dessas pessoas. Portanto, tinha a certeza de que jamais
desvendaria o nosso segredo. Confio em ti..., murmurou». In Paloma Sanchez-Garnica, A Alma
das Pedras, tradução de Miguel Coutinho, Saída de Emergência, 2010, ISBN
978-989-637-288-0.
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