terça-feira, 27 de novembro de 2018

Ensaios sobre História de Portugal. Questionar a História. António Borges Coelho. «É pela consciência (pela consciência científica) que o historiador (e nós com ele através dos sinais) se apropria do real histórico. Mas a consciência tende a apresentar-se como o real e a construtora do real»

jdact

A história faz-se (ou da prática actual dos profissionais de história). Depois de Abril de 1974
(…) Fazer História exige um duplo esforço: o da informação e o da teoria. A informação nunca é bastante. Mas informar-se não significa aceitar como verídico todo o rol de informações em segunda mão, baseadas muitas no simples ouvir dizer, outras produto de imaginações delirantes. A Idade Média constitui nesse aspecto um alfobre de informações deste género. É necessário ir às fontes, aos documentos, aos escritos da época, à literatura da época, aos monumentos, aos restos, aos vestígios. Por outro lado e noutra direcção, o investimento na teoria não significa que se tenha de navegar num mar cavado de abstracção, sem o porto dos factos. De tal modo que alguns, quando tocam o fundo, já inteiramente submersos, julgam ainda que estão a alcançar as Índias... Falámos, e poderíamos continuar largamente, nos aspectos negativos, mas quantos trabalhos individuais ou de grupo Se escreveram nestes anos que mestres não desdenhariam de assinar? A História faz-se, leva consigo a marca do produtor-produzido: não só a do seu talento (a ele e a quem mais o deve?), não só a da técnica (quase totalmente herança colectiva), mas a dos limites da matéria-prima e a do horizonte social do seu grupo e do seu tempo.

Para a análise do conteúdo do vocábulo história
História real e História teoria
O vocábulo história recobre, antes de mais, dois conteúdos bem diferentes: designa os acontecimentos vividos, a duração concreta, as lutas reais Homem-Natureza, Homens entre si; e designa também a apropriação, através da consciência, da escrita e dos sinais, desses mesmos acontecimentos, dessas mesmas lutas. A não distinção destes dois conteúdos, bem como a não distinção das relações que mantêm entre si, geram continuamente um sem-número de equívocos, designadamente o de que a História teoria é o espelho da História vivida, quando não a própria História vivida, verdadeira e eterna como o Livro Sagrado. E, no entanto, aceitar que a História teoria não é a História vivida parece uma simples redundância.
Que relações mantêm estas histórias entre si, que relações mantém a nossa descrição dos acontecimentos sociais com as lutas reais, com os Napoleões reais? Os livros de História Universal ou Nacional não são o igual mas o símbolo da História real, dos Afonsiques reais. Símbolos não revelados, laboriosamente construídos, de maneira mais ou menos eficaz, permitindo assim ao autor ou manuseador dos símbolos um comportamento mais ou menos adequado face ao passado, ao presente e ao futuro. O historiador, o homem que faz, que escreve, que fala a História teoria, que vê o visível da História vivida, está sujeito à partida, como vimos já. Actua em circunstâncias históricas predeterminadas. Usando uma expressão clássica, o educador é educado, o criador criado, o produtor produzido.
É pela consciência (pela consciência científica) que o historiador (e nós com ele através dos sinais) se apropria do real histórico. Mas a consciência tende a apresentar-se como o real e a construtora do real. Escreve Marx: para a consciência, e tal é a determinação da consciência filosófica, para quem o pensamento conceptual constitui o homem real e para quem seguidamente só o mundo apreendido no conceito é como tal o mundo real, o movimento das categorias surge-lhe como o verdadeiro acto de produção (o qual, que maçada!, recebe afinal um impulso do exterior), cujo resultado é o mundo. Isto é exacto mas não passa de uma outra tautologia, na medida em que a totalidade concreta enquanto totalidade pensada, concreto pensado, é de facto um produto do acto de pensar, do acto de conceber. Não é, pois, de modo algum o produto do conceito que se engendraria a si próprio, que pensaria fora e acima da intuição e da representação, mas um produto da elaboração que transforma percepções e representações em conceitos. A totalidade tal como aparece no espírito como um todo de pensamento é um produto do cérebro pensante que se apropria do mundo da única maneira possível, maneira que difere da apropriação do mundo na arte, na religião, no espírito prático. Depois como antes o sujeito real subsiste na sua autonomia fora do cérebro». In António Borges Coelho, Questionar a História, Ensaios sobre História de Portugal, colecção Universitária, Editorial Caminho, Lisboa, 1983.
                      
Cortesia de Caminho/JDACT