sábado, 24 de novembro de 2018

Clérigos, Mercadores, Judeus e Fidalgos. António Borges Coelho. «E porque a História não desiste de tirar lições, desde os primeiros passos, quiseram os políticos controlar o retrato que dos acontecimentos e dos homens traçam os que escrevem História»

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Modelos da expansão portuguesa quatrocentista
Fases e modelos
«(…) Encarando as coisas por outro ângulo, durante o século XV ensaiaram-se os modelos que a expansão portuguesa nos séculos XVI e XVII haveria de percorrer. O primeiro modelo encontrou na conquista e na conservação de Ceuta o pólo aglutinador. À primeira vista parece inserir-se nos velhos passos da reconquista: conquista de terras, de homens e de riquezas. Mas a novidade está no papel central que, para a manutenção da praça e a riqueza dos seus capitães, tem a navegação marítima. Ceuta torna-se um ninho de corsários e de depredadores dos campos norte-marroquinos. A tentativa de conquista das Canárias e as primeiras viagens para lá do Bojador inserem-se claramente neste ciclo. Estamos no essencial em operações de conquista, de saque, de captura e resgate de cativos. Na guerra marítima antimuçulmana anterior à conquista de Ceuta, a costa algarvia desempenhou o papel principal. Agora é legítimo falar num triângulo cuja base é o Algarve, particularmente Lagos, Faro e Tavira, e de que Ceuta é o vértice. Estas operações de corso despertaram a cobiça dos infantes Henrique e Pedro, que obtiveram para si o quinto régio das presas capturadas pelos seus corsários.
O segundo caminho rasga-se com a colonização da Madeira, a tentativa de conquista e colonização das Canárias e mais tardiamente a colonização dos Açores. Inicialmente a colonização assentou em terra livre com o só encargo da dízima a Deus, organizada na pequena exploração camponesa ou na média e grande com trabalho assalariado dos braceiros. Mas rapidamente o açúcar se isolou à frente dos cereais e do vinho, açúcar que dará lugar às grandes plantações escravocratas de S. Tomé e do Brasil.
O terceiro caminho definiu-se com a feitoria e o castelo de Arguim e com a feitoria e castelo de S. Jorge da Mina. Foi criada uma organização comercial, protegida por fortalezas erguidas em ilhas facilmente defensáveis e protegidas pelo mar dominado pelos navios portugueses, organização que usava o exclusivo ou monopólio dos artigos comercializados. Em Arguim e na Mina dominam o ouro e os escravos. Na Índia e em Malaca as especiarias, as pedras preciosas, os têxteis e móveis asiáticos e ainda o ouro e os escravos.

Sentidos da História
Desde Heródoto que a História pretende ser exemplar, dar lições. Esquecemos as palavras de Hegel:

No tumulto dos acontecimentos do mundo, uma máxima geral socorre-nos tão pouco como a recordação das situações análogas que puderam produzir-se no passado porque uma pálida lembrança é sem força na tempestade que sopra sobre o presente; não tem qualquer poder sobre o mundo livre e vivo da actualidade.

E porque a História não desiste de tirar lições, desde os primeiros passos, quiseram os políticos controlar o retrato que dos acontecimentos e dos homens traçam os que escrevem História. Tirar lições é de certo modo acreditar que a História tem sentido ou sentidos e até, que faz sentido apontar os culpados e os heróis. Mas no movimento social não acontece muitas vezes as gentes empurrarem numa direcção e as coisas rumarem num sentido inverso? Se o rei Manuel I tivesse apoiado a maioria dos seus conselheiros que se opunham à navegação para a Índia, acaso ficaria por abrir a Rota do Cabo? Não é nada provável que tal acontecesse. Faz sentido falar em causa, em razão, em explicação mesmo sabendo que a causa é a nossa ideia do movimento das coisas?
Enquanto houver homens racionais perseguir-nos-ão os porquês, as razões, com ou sem resposta, mesmo com respostas que envelhecem ou se revelaram erradas. Pretendo ser dos que dão testemunho da máxima de Leibniz nos Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano:

Falar contra a razão é falar contra a verdade..., é, falar contra si mesmo.

No tabuleiro das ideias, umas pedras apoucam a vontade dos homens enquanto outras a exaltam a extremos absurdos. E por vezes todos julgamos sentir que os nossos passos se projectam nos passos de Édipo, rei de Tebas. Quanto mais fugimos da tempestade, mais depressa mergulhamos na sua fúria. Mas logo a seguir erguem-se vozes explicando que os nossos antepassados navegam movidos por espírito de cruzada (algum houve, mas muitas dessas vozes desejavam que essa cruzada prevalecesse no tempo presente) ou por puro desejo de saber, de conhecer o outro, de se ver no espelho do outro». In António Borges Coelho, Clérigos, Mercadores, Judeus e Fidalgos, Questionar a História, Colecção Universitária, Editorial Caminho, 1994, ISBN 972-21-0957-X.

Cortesia da Caminho/JDACT