jdact
Cárceres e quotidiano
«(…) Não faltam os corredores, como vemos pelas plantas de Mateus Couto.
O que falta é, espaço, mesmo quando o preso ocupa sozinho uma cela. Os
desgraçados não sabem se hão-de estar sós ou acompanha-os. Se ficam sós têm
falta de todo o comércio humano, porque só lhe abrem a porta de fora, às suas
horas, pela grade da segunda porta. O mercador e lavrador Lopo Gonçalves, o
Cavaleiro, de Elvas, de 58 anos, pertinaz e negativo, podia desfrutar ainda do
conforto relativo, à sua custa, de que dá notícia o espólio que deixou na cela
quando saiu a caminho da fogueira: um cobertor de Castela (velho); outro
cobertor branco já roto; mantéu, calças, camisas, lenços, cinta, chinelos, dois
pelotes, mantéu pardo, colchão, coberta; toalhas de mesa; pano de cabeça;
guardanapos velhos; um bufete velho e paus de talabarte; uma bolsa velha com
trinta réis e dois ceitis; meia caixa de marmelada e outra vazia; um pente; um pouco
de açúcar torrado, umas Horas de Nossa Senhora muito velhas; e uma
canastra pequena onde estão as miudezas.
Nos cárceres de vigia
Havia cárceres especiais, os cárceres de vigia, onde, por orifícios escondidos
nas paredes ou no tecto, o preso ou presa incomunicáveis eram controlados nos
seus passos as vinte e quatro horas do dia. Isabel Álvares, tia-bisavó do
filósofo Bento Espinosa, viúva, natural da Vidigueira, condenada a relaxe à
justiça secular e, usando com ela de muita misericórdia, deixando o rigor de
direito que suas culpas mereciam, reconciliada já no cadafalso do auto-da-fé de
12-7-1598 (processo nº 4676), esteve num destes cárceres de vigia da Inquisição
(maldita) de Évora. O primeiro espia
escalado, Agostinho Fernandes, familiar do Santo Ofício (maldito), foi por mandado dos senhores inquisidores à vigia da
quarta casa do corredor novo de cima. Isabel Álvares esteve deitada até às sete
horas da manhã. Nessa altura bateram à porta do cárcere e deram-lhe uma brasa
de lume com que acendeu o fogareiro. E concertou nele um pouco de arroz com
azeite e açúcar e sal. E assou um ovo e uma maçã. E depois da dita comida
feita, a cobriu no mesmo fogareiro, por estar já o fogo apagado, e a deixou
ficar sem comer nada dela. Dera os bons-dias às vizinhas com sinais batidos na
parede. E que Isabel Álvares, mãos postas olhando o céu, exclamara: Senhor,
livrai-me! Senhor, ajudai-me que já tardais!
Por sua vez o segundo espreita, Pedro Correia, guarda do cárcere
declarava ao inquisidor: e se foi duas vezes à fresta do dito cárcere, subindo
pelas grades, lançando a mão fora pela dita fresta, cabeceando com a cabeça,
olhando para o céu, bulindo os beiços. O terceiro vigia do dia foi Gonçalo
Fernandes, homem do meirinho. Viu estar a dita presa assentada sobre a cama
fazendo rede e tinha a sua comida coberta sobre o fogareiro. Que cortara as unhas
por três vezes. E depois do céu ter já, estrelas, começou a cear da comida que
tinha no fogareiro, começando pela maçã assada e depois comeu o ovo. Noutro dia
e noutro jejum, relata o guarda Gregório Fernandes, Isabel Álvares em pé, abria
as mãos e as fechava, olhando para a fresta, bulindo com os beiços (mas ele
testemunha não entendia o que ela falava), o que fez depois disto por duas
vezes. E depois de o fazer a primeira vez, lavou todo o corpo; e as mãos lavou
quatro ou cinco vezes; e as unhas das mãos cortou três vezes. A ceia fora agora
sardinha e pão.
Num terceiro jejum ceou sardinha com cebola, pão e arroz. Quando
fizeram sinal na Sé para alevantarem o Santíssimo Sacramento, a dita presa não
fez oração ainda que, depois disso, deu os bons-dias a seus vizinhos do mesmo
cárcere batendo na parede. Outro vigia declara:
Uma das ditas vezes, indo defronte da fresta, se foi deitar sobre a cama;
e estava com as mãos postas e olhos fechados por algum espaço. E depois abrindo
os olhos e as mãos, disse estas palavras; Senhor, livrai-me que estou perdida!
E noutra altura; Senhor, ajudai-me e a duas filhas minhas que estamos aqui nesta
amargura! E em latim; Nune demitis servum tuum! (Não abandones o teu servo!).
In António Borges Coelho, Inquisição de Évora, dos Primórdios a 1668,
volume 1, Editorial Caminho, colecção Universitária, Instituto Português do
Livro e da Leitura, 1987.
Cortesia Caminho/JDACT