sexta-feira, 30 de novembro de 2018

João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Os exércitos sabiam que a batalha estava para breve e seria ali, perto do castelo onde se refugiavam o Rei de Portugal, a Rainha, o Príncipe e seus partidários»

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A morte de Lancelot
«(…) Saqueando e violando como bárbaros. O Príncipe, numa noite, com um punhado de bons soldados, teve de tomar de assalto Ouguela, ao pé de Estremoz, que um contingente castelhano conquistara... Afonso escreveu uma carta ao filho, pedindo-lhe auxílio e marcando-lhe um encontro em Zamora. Em Miranda do Douro, o herdeiro da coroa, em vez da escolta prometida pelo pai, tinha à sua espera Vasco Martins Chichorro, capitão da guarda real. Por Deus, não avançasse! Dois alcaides traidores tinham prometido a Fernando e Isabel prendê-lo como refém! A traição fora descoberta pelo Rei em Zamora e este tentara liquidar os dois traidores. Em vão, entrincheirados, junto à ponte, os castelhanos ainda dizimaram mais portugueses! A cidade berrava traição!, todos corriam, discutiam, a paz perdera-se, a histeria instalava-se e o Rei e a Rainha, no meio da confusão geral dos populares em desvario e dos conselheiros, não sabiam o que fazer. Dona Joana olhava, atónita, aquele gordo tio e marido, indeciso, desesperado, impotente como um bebé, perante o descalabro que se avizinhava. Portanto, se a traição imperava, era preferível seguir dali para o castelo de Toro, para redobrada segurança, aconselhou o arcebispo de Toledo. E assim se fez, embora isso provocasse o desalento nas próprias hostes partidárias do lado castelhano, que desejavam manter Afonso em Zamora...
O Príncipe achou que era de mais e não podia consentir em ver o pai numa tal situação pela sua honra e dignidade. Foi à Guarda. Convocou as cortes. Precisava de gente e dinheiro para atravessar a fronteira. Conseguiu-o com empréstimos, inclusive dos eclesiásticos, e a prata das igrejas. Claro que assistiu ao saque que os fidalgos fizeram, aproveitando-se da situação..., mas não era tempo para censuras e dialécticas de tom moral. O tempo urgia. Estava-se a 24 de Janeiro de 1476. Deixou a regência à mulher, dona Leonor. Entretanto, recebia notícia de um primo, Carlos de Borgonha, que começava também, com as suas ambições, a declinar: os franceses preparavam-se para o vencer no duelo de vida e de morte que se estabeleceu entre a sua Liga do Bem Público e a Coroa francesa. No início de Fevereiro chega a Toro. Levava consigo um exército de emergência, mas coeso e disciplinado. Saqueou San Felices, entrou em Ledesma, que se lhe entregou, e reabasteceu-se. Quando chegou junto do pai, a esperança voltou e o Monarca revigorou-se, parecia mais novo, cheio de sonhos como uma criança que alcança o aconchego do lar, no colo protector da mãe. E a verdade é que o filho passara a ser a mãe e o pai do Rei português. Passara a ser tudo. A madrasta, jovem e alegre, abraçou-o como salvador, no meio das suas damas, algumas tão jovens como ela. João olhou uma que o fixou também e que não mais iria esquecer. Era filha de Afonso Furtado Mendonça e, como açafata da Rainha, acompanhara-a a Toro. Descendente de subida linhagem, muito grácil e bonita, agradou ao Príncipe que, pela primeira vez, se sentiu enfeitiçado, experimentando o fulgor de um sentimento que desconhecera até então, mas havia trabalho a fazer. E trabalho inadiável.
O Inverno era duro e, nas tendas, os soldados tiritavam. O rei Afonso tentou reconquistar Zamora, depois de negociações que não se concluíram. Chegou a Toro praticamente seguido pelas tropas de Fernando, que o espiavam. Os soldados não conseguiam manter as tendas secas nem, muitas vezes, de pé, devido à ventania. A chuva caía, insistente, gelada. Os exércitos sabiam que a batalha estava para breve e seria ali, perto do castelo onde se refugiavam o Rei de Portugal, a Rainha, o Príncipe e seus partidários. E assim aconteceu numa terrível tarde de nevoeiro, chuva, frio, onde homens e cavalos se enterravam no lamaçal pegajoso por entre os rasteiros arbustos». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
                                                                                 
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