Modelos da expansão portuguesa quatrocentista
Sentidos da História
«(…) No passado os que mais exaltaram o livre arbítrio apresentavam os
homens como instrumentos ou joguetes da Providência. Esta, para abater os
soberbos e os pecadores, confundia os náufragos, castigava os terráqueos com a
carga dos quatro cavaleiros do Apocalipse:
a fome, a peste, a morte e a guerra.
Hoje a negação, o apoucar da frágil e bruxuleante vontade aponta os
homens como bonifrates manipulados pelas condições objectivas. Falam, mas a voz
é alheia. O açúcar determinou o povoamento humano do Atlântico. O clima e as
fomes explicam (e explicam mesmo) os movimentos sociais. As condições
objectivas actuam por mediação da consciência, mesmo a subliminar, consciência
que cada vez mais, com as armas da técnica e da ciência, transforma as próprias
condições objectivas. O doloroso é que toda a explicação, mesmo aquela que
explica negando, ou ainda aquela que brame contra a perda de tempo que seria
explicar e compreender, se repercute nos dias de hoje, na nossa concepção do
mundo, no nosso agir quotidiano.
Causas e contradições
Em muitas falas, os portugueses do século XV aparecem irmanados num só
corpo, dirigidos por homens sábios que manipulam desinteressadamente
astrolábios e globos terrestres e escolhem com grande acerto os melhores
caminhos para a Índia e o Brasil. Agiam, de algum modo, descontado o progresso
técnico, como os sábios modernos dos centros espaciais, que desinteressada e
cientificamente, construiriam as naves que lançam sobre os planetas e as outras
galáxias. A realidade parece-nos bem diferente, embora englobe num e noutro
caso uma parcela grande e fecunda de verdade. A vida dos homens traz a marca do
seu interesse multiforme. Quando na época joanina os navegadores avançaram para
a África Austral, escreveu Duarte Pacheco Pereira:
ca posto que na costa, por seu mandado sabida, não houvesse nenhuma
utilidade, como de feito não há, nem por isto o devemos culpar, porque a culpa
é desta terra ser quase deserta, e nela não há cousa sobre que se homem podesse
alegrar; e tanto mor louvor lhe devemos dar, quanto menos proveito em tamanha
região por ele descoberta se soube; porque se muita riqueza destas províncias ele
adquirira, não faleceram murmuradores e maldizentes que disseram que por seu próprio
interesse seguira a tenção de seu descobrimento; e pois temos sabido que disto
se não tirou outro bem salvo muita despesa e ficar um largo caminho aberto para
se descobrir a Índia, por tanto somos desenganados que o que este sereníssimo
príncipe fez foi por sua glória e magnificência e por saber terra nova incógnita
a todalas outras gerações e não por outro respeito.
Navegar costa sem utilidade equivale a culpa mas a culpa não é do rei
mas da costa pouco povoada, a culpa é dos descobertos não dos descobridores
(europocentrismo nítido). Mas afinal, no plano dos valores, quanto menor o
proveito de navegar, maior o louvor, porque se muita riqueza houvesse muitos
seriam os murmuradores a falarem no interesse do rei. As razões que moviam o
rei João II eram, nas palavras de Duarte Pacheco, a ânsia (desejo, interesse)
de glória e a magnificência (glória e magnificência que só a costa útil pode
dar) e o desejo de saber terra nova incógnita. Mas este desejo não estava só
nem era porventura a mola mais profunda porque afinal a despesa das viagens é
compensada pela abertura da porta da Índia (e, portanto, das suas riquezas).
A nossa historiografia demonstra que a procura dos porquês, como é
óbvio, fecunda. No campo específico da expansão portuguesa, as polémicas da
primeira metade deste século, que tiveram como protagonistas, principais
António Sérgio, Duarte Leite, Jaime Cortesão, David Lopes, Veiga Simão, Joaquim
Bensaúde e, na geração seguinte, Vitorino Magalhães Godinho, abriram largos
caminhos. Do longo debate travado, que para alguns sofreu e sofre do pecado da
ideologia como se a ideologia não fosse pão quotidiano de cada um, e não menos mastigado
por aqueles que julgam ou fingem estar de fora, resultou ser hoje relativamente
pacífico referenciar como causas objectivas dos Descobrimentos Portugueses
quatrocentistas a posição marítima de Portugal, admiravelmente formulada por
António Sérgio; a revolução nos transportes marítimos; a pressão dos mercados
inter-regionais europeus sobre as matérias-primas, os metais preciosos e a
mão-de-obra; a acumulação mínima de capitais.
Nas causas subjectivas, há que assinalar a experiência crescente dos
nossos marítimos no mar de Espanha, na costa atlântica, no mar Mediterrâneo e
nas viagens pelo largo para a Madeira, os Açores e no regresso da costa
africana; o desejo de saber, a honra, a fé, o mito». In António Borges Coelho,
Clérigos, Mercadores, Judeus e Fidalgos, Questionar a História, Colecção
Universitária, Editorial Caminho, 1994, ISBN 972-21-0957-X.
Cortesia da
Caminho/JDACT