«(…) Já tinha posto báton e escovado o cabelo. Foi tirar o telefone
da tomada para poderem falar à vontade. Onde tens estado?, perguntou. Ocupado. Problemas
na fábrica? Antes fosse isso. Ela serviu o café e deitou umas gotas de brande
na sua própria chávena. Felsen impediu-a de fazer o mesmo na dele. Depois.
Agora quero saborear o café. Há dois dias que me fazem beber chá. Fazem? Quem? Os
SS. Brutais, esses rapazes, disse ela com uma ironia automática, sem sorrir. Que
querem os SS do meu cordeirinho suábio? O fumo subia em espirais sob o
candeeiro art deco. Felsen
baixou o abat-jour. Não
me disseram, mas acho que é um cargo. Pediram o teu pedigree? Disse-lhes que o meu pai arava com as mãos nuas a
fértil terra alemã. Gostaram. Falaste-lhes do teu pé? Disse que o meu pai me
tinha deixado cair um arado em cima. Riram-se? Não é um ambiente muito animado.
Felsen acabou de beber o café e deitou brande sobre as borras. Conheces um tal
Gruppenführer Lehrer?, perguntou. O SS-Gruppenführer Oswald Lehrer, disse ela,
imobilizando-se. Porquê? Vou jogar cartas com ele logo à noite. Consta que está
encarregado de gerir as SS, ou, mais precisamente, os KZ, como uma empresa
comercial..., pagando as suas próprias despesas, ou coisa parecida. Conheces
toda a gente, não é? É o meu trabalho, disse ela. Admira-me que nunca tenhas
ouvido falar dele. Já esteve lá no clube. Neste e no antigo. Ouvi falar, claro,
disse ele, mas era mentira. Felsen pensava febrilmente. Os KZ. Os KZ. Que tinha
ele a ver com isso? Quereriam distribuir-lhe mão-de-obra barata dos campos de
concentração? Reconverter a sua fábrica para a indústria bélica? Não. Um cargo.
Queriam dar-lhe um cargo. Sentiu de repente um calafrio na espinha. Não iam
decerto encarregá-lo de gerir um KZ? Ou...? Bebe mais brande, disse Eva,
sentando-se ao colo dele. Não te canses a adivinhar. Nunca se sabe.
Passou-lhe os dedos pelos cabelos ásperos e acariciou-lhe a maçã
do rosto com o polegar, como se ele fosse uma criança com um sinal.
Inclinou-lhe a cabeça para trás e deixou-lhe a marca do báton na boca. Pára de pensar, disse-lhe. Felsen
introduziu uma manápula na manga do quimono e foi agarrar-lhe um dos seios
firmes, sem soutien. Deixou a outra mão correr por baixo da
bainha da combinação. Eva sentiu-o retesar-se sob o seu corpo. Levantou-se,
voltou a embrulhar-se no quimono e apertou o cinto. Encostou-se ao vão da
porta. Vejo-te esta noite? Se me deixarem sair, disse ele, mudando de posição
na cadeira, incomodado pela erecção. Não te perguntaram como é que um moço de
lavoura suábio sabe tantas línguas? Por acaso perguntaram. E tiveste de lhes
fazer um relatório completo das tuas amantes. O meu mal foi ser bom de mais,
disse Felsen, não conseguindo mostrar-se arrependido e deitando mais brande na
chávena. Com as mulheres? Não, não. Chamei a atenção..., com a vida que faço...
Tivemos bons momentos, disse Eva. Felsen, que fitava a
carpete, levantou bruscamente a cabeça. Que disseste?, -
perguntou, surpreendido. Nada, respondeu ela, inclinando-se por cima dele a
apagar o cigarro. Felsen aspirou-lhe o cheiro. Ela recuou. Qual é o jogo desta
noite?» In
Robert Wilson, Último Acto em Lisboa, 1999, tradução de Maria Douglas, Gradiva
Publicações, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-662-762-1.
Cortesia de
Gradiva/P/JDACT