O
Cerco. 1147
Lisboa,
Junho de 1147
«Em
Lisboa, um frenesim assustado tomara conta das gentes. Temia-se a chegada das tropas
cristãs, rumores e pavores corriam pelas ruelas mais depressa do que cães. Mem e
as três irmãs conseguiram entrar na cidade, mas haviam sido interrogados pelos guardas
diversas vezes. A desconfiança é uma condição essencial para a sobrevivência e eles
viram vários suspeitos serem executados.
Medo permanente, mata muita gente.
Cessara completamente a libertinagem
do passado, de que Mem usufruíra. Os mais de cem mil lisboetas tinham suspenso a
festa de encontros furtivos e o trabalho das soldadeiras era discreto, fosse porque
o conselho de notáveis impusera regras apertadas, ou porque o medo fechava as pernas
às mulheres e abatia o ânimo aos homens.
Guerra por perto, pior que deserto.
Naquele Verão, os lisboetas sabiam
só poder contar consigo próprios. Em Córdova, já não existia nenhum príncipe Ismar
que corresse a defendê-los, como cinco anos antes. Os actuais emires andaluzes eram
uns incapazes, o avanço militar de Afonso VII aprofundara-se e ninguém conseguia
organizar uma defesa conjunta, quanto mais salvar Lisboa.
Sobram inimigos, faltam amigos.
Os únicos que talvez pudessem
fazê-lo eram Ibn Qasi e Ibn Wasir. Porém, o marido de Zaida, cada vez mais inflexível nos seus éditos
religiosos, copiados dos almóadas de Marrocos, continuava reduzido às cidades de
Mértola e Silves, com receio de um ataque de Ibn Wasir. Um temor justificado, pois
este jurara fidelidade aos almóadas e tinha como objectivo a reconquista de Silves,
não o auxílio à distante Lisboa.
Perda sofrida, desforra prometida.
Mem vivia preocupado com as notícias
provenientes do Al-Gharb, temendo pelo futuro de Zaida. A princesa permanecia em
Silves, juntamente com a filha Maryam, e o cavaleiro de Almourol queria partir para
lá antes que as tropas de Wasir atacassem a povoação.
Amor em perigo, conta comigo.
Só a lealdade a Afonso Henriques o
fazia adiar a viagem. Tinha uma missão: viera ali para falar com Abu Zhakaria. Depois,
podereis salvar Zaida, relembrou Ália. As três irmãs, dirigidas por Mem e Martim
Mohab, efectuaram uma contagem das forças muçulmanas. Lisboa dispunha de mais de
quinze mil soldados, incluindo milhares de arqueiros e besteiros, colocados
estrategicamente ao longo das muralhas, cuja forte espessura e excelente estado
permitiam aguentar um cerco prolongado. As vinte e cinco torres da cidade, construídas
quase todas pelos cristãos no século anterior, seriam duras de tomar.
Cidade avisada, está bem preparada.
Lisboa ia vender cara a derrota e,
apesar de não ter um líder forte a chefiá-la, o previdente conselho de notáveis
organizara a povoação para um longo período de atribulações, apostando que, se resistissem
durante o Verão, no princípio do Outono os cristãos perderiam o ímpeto e os cruzados
seguiriam para a Terra Santa. Têm provisões para meses, informou Ília, que acabara
de descobrir os grandes armazéns onde os sitiados guardavam o trigo, as frutas e
as carnes secas. Realizado este levantamento, só faltava a Mem o encontro com Abu
Zhakaria. Já o tinham visto, acompanhado por Malik, que o servia com lealdade idêntica
à que devotara ao príncipe Ismar. É tempo de falar com ele, insistiu Élia. O cavaleiro
de Almourol prometeu que assim faria, mas primeiro pediu às raparigas e a Martim
Mohab que permanecessem recolhidos num casão. De manto à cabeça, para que
ninguém o reconhecesse, caminhou pelas ruelas da almedina lisboeta até à morada
do seu amigo piloto, o mesmo que nos levara e a Afonso Henriques, anos antes, até
ao rio Arade». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das
Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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