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O Assassin de Lisboa 1142-1143
Lisboa, Abril de 1142
«(…) A seu lado, Gualdim Pais
aprovou a declaração de fidelidade do príncipe de Portugal com um aceno de
cabeça, mas Chamoa perguntou se não tinham dúvidas, depois do que haviam ouvido
sobre a intriga de Compostela. Ora, ora, isso é uma tolice leonesa!,
indignou-se o filho. Quem vai acreditar numa patranha tão tosca? Chamoa lembrou
que já dona Urraca e o arcebispo Gelmires haviam duvidado do príncipe aleijado,
tal como agora fazia o imperador. Mãe!, interrompeu-a Pêro Pais. Esse diria
qualquer coisa, todos sabem que vos quer filhar! A minha cunhada ficou tão
surpreendida com as palavras dele que soltou uma gargalhada. Pêro, que dizeis?
Sou vossa mãe! Com uma óbvia admiração, o filho ripostou-lhe: sei bem o quão
bela sois e o quanto os homens vos desejam! Ela franziu a testa, lisonjeada
como mulher, mas também ligeiramente preocupada como mãe. Dizem que sois um atrevido
com as senhoras. É assim, Gualdim?
O amigo do filho corou, dividido
entre o respeito que devia a Chamoa, que impunha uma confirmação do rumor, e a
lealdade fraternal ao amigo, que exigia uma defesa da honra deste. Sobre isso
ele nada sabe, antecipou-se Pêro Pais. O Gualdim defende a castidade, quer
entregar-se a Deus. Disse-o sem maldade, não considerava um erro a escolha do
amigo, mas deixou claro que era diferente. Orgulhosa, Chamoa aprovou-o: tendes
a quem sair. Vosso pai e eu sempre fomos muito soltos! O filho sorriu, cúmplice
e agradado. Mas, de repente, viu Chamoa levantar-se num pulo, olhando para o
embarcadouro onde atracava uma barcaça, enquanto exclamava: por Santiago, não
posso crer! A minha cunhada desatou a correr para o rio e Pêro e Gualdim
seguiram-na, surpreendidos, até ela estacar à frente de uma carroça com dois
jumentos, onde vinham um homem de cabelos claros e três raparigas morenas.
Mem!, gritou Chamoa.
O almocreve saltou para o chão e
ela abraçou-o demoradamente, com enorme carinho. Não contente com isso, colocou
as mãos na cara dele e deu-lhe um beijo rápido na boca, o que espantou Pêro,
Gualdim e as três raparigas. Mem!, repetiu Chamoa. Que saudades! O almocreve
sorria, um pouco atarantado, enquanto ela o cobria de perguntas. Donde vinha?
Por onde andara? E Zaida, onde estava? E quem eram aquelas raparigas? Tivemos
de fugir de Lisboa, contou Mem. A grande cidade onde o Tejo desaguava estava
nas mãos de um bando de facínoras, que matava cristãos e moçárabes. Por isso,
trouxera com ele as três irmãs, Ália, Élia e Ília, órfãs de pai e mãe, cuja
vida corria perigo. Os Mantos Vermelhos chegaram a atacá-las, justificou-se
Mem. Chamoa, que o conhecia muito bem, comentou: sempre um bom pastor das
ovelhinhas... O almocreve sorriu, mas logo perguntou: e vós? Sei que haveis tido
um filho de Afonso Henriques! A minha cunhada suspirou, desalentada: sou feliz
no presente, mas não no futuro.
Nesse momento, uma das raparigas
moçárabes deu um pequeno grito, apontando para o chão e gritando cobra!, e logo
Pêro Pais puxou de um punhal que trazia ao cinto. Pegando-lhe pelo cabo,
atirou-o com a mão direita, num movimento rápido e preciso que atingiu a cabeça
da pequena víbora, a qual ficou a estremecer, moribunda, enquanto as três irmãs
aplaudiam. Que moço tão hábil!, gabou Ália. Que destreza de mãos!, apreciou
Élia. Por fim, Ília, que descobrira o réptil, exclamou: e que belo rapaz!
Chamoa observou a forma firme e
rápida como o filho recuperou o punhal. Era a arma que Gonçalo Sousa lhe devolvera
em Arcos de Valdevez, depois de humilhar Fernão Peres Trava. Dera-a ao filho,
pois fora do pai dele, Paio Soares. O rapaz limpou a lâmina e mirou a carroça,
onde se multiplicavam os risinhos». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal,
Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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