terça-feira, 6 de novembro de 2018

O Mercador de Livros Malditos. Marcello Simoni. «… Uberto sentiu-se um pouco deslocado. Lá estava ao pé de um edifício majestoso, no coração de uma cidade marítima que desafiara e vencera a soberba Constantinopla»

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«(…) Baixando o olhar, o jovem notou no piso inferior, sobre um embasamento de mármore, as janelas da cripta. Esta devia ser bem maior que a de seu pequeno mosteiro perdido entre as lagunas. Ignazio pousou-lhe a mão no ombro e levou-o para a frente do edifício, atravessando a multidão barulhenta. Sobre o portal, quatro cavalos de bronze reluziam ao sol da manhã já adiantada. Espantosas, não? Fazem parte do espólio da Quarta Cruzada, explicou o mercador, mostrando as estátuas. Diante de tanta magnificência, Uberto sentiu-se um pouco deslocado. Lá estava ao pé de um edifício majestoso, no coração de uma cidade marítima que desafiara e vencera a soberba Constantinopla. E ele, um convertido que quase nada conhecia do mundo, só podia sentir perplexidade e entusiasmo. Antes de entrar na basílica, o mercador dirigiu-se a Willalme: espere aqui e fique alerta, disse-lhe à meia-voz. Eu vou com o rapaz. O francês anuiu e, sem replicar, afastou-se dos companheiros e foi sentar-se na escadaria diante da fachada, confundindo-se com a massa de passantes e mendigos. Depois de atravessar o vestíbulo iluminado, Ignazio e Uberto mergulharam na sombra da basílica. Caminharam sobre o piso ladrilhado até chegar à extremidade da nave principal. Dali distinguia-se com clareza que os quatro braços do edifício formavam uma cruz. E cada braço, por sua vez, se subdividia em três naves menores com colunatas paralelas. Uberto ergueu os olhos para o tecto coberto de mosaicos dourados. Mas, em baixo, sombras taciturnas vagavam por entre os pórticos à luz dos candelabros. De repente, Ignazio estacou, chamou a atenção de Uberto com uma leve pressão no ombro e pigarreou. Aproximava-se deles um homem de fronte alta e cabelos cinzentos, vestindo uma túnica amarela bordada, calças pretas e botas de couro. Trazia aos ombros um manto de veludo vermelho. Era o conde Enrico Scalò, seu antigo conhecido, um rico patrício amigo do doge e membro do Conselho dos Quarenta. Ignazio saudou-o com respeito. Meu senhor, eu estou feliz em revê-lo. E acrescentou, pois não ignorava o narcisismo daquele homem: radiante como sempre! Um dia destes, vai revelar-me o que faz para se manter sempre em forma.
Mestre Ignazio, o segredo são as boas comidas e as belas mulheres, pavoneou-se o nobre. Mas logo se fez sério: apreciei muito que tenha atendido ao meu chamado. Tenho uma missão importante a lhe confiar. Sou todo ouvidos. Ah, peço licença para lhe apresentar o meu novo assistente, Uberto, disse o mercador, apontando o seu companheiro. A essas palavras, o rapaz fez uma mesura complicada, como aprendera no mosteiro de Santa Maria del Mare. Scalò cumprimentou-o com um aceno de cabeça e acrescentou: endireite-se, meu jovem. Uberto obedeceu, esboçando um sorriso tímido. Com seu manto grosseiro, sentia-se ínfimo diante daquele elegante patrício. O nobre virou-se novamente para o mercador: a propósito, Ignazio, uma noite destas, eu gabava, em companhia do bispo, o valor de um presente seu. Lembra-se da Bíblia ilustrada que me enviou no ano passado? Aqui está ela. Trago-a sempre comigo.
O conde manuseava um livro velho. Abriu-o, e Uberto pôde admirar as figuras que ilustravam as páginas, imagens sacras; certamente, obras de um miniaturista alexandrino. Lembro-me perfeitamente, admitiu Ignazio, lembrando-se, sobretudo, do pouco que ganhara com aquela transacção. Não foi nada fácil obtê-la. O nobre aquiesceu compreensivo. O doge apreciou muitíssimo este livro e quis que uma das suas miniaturas mais bonitas fosse reproduzida entre os mosaicos de São Marcos. Venham, vou mostrar-vos. Dizendo isso, o conde levou-os para o braço ocidental da basílica. Atravessou uma passagem sob a colunata de mármore, cruzou um portal e chegou ao pátio. Aquele lugar, conforme Uberto já notara de fora, estava sendo restaurado. Hoje é domingo, não há operários a trabalhar, explicou o nobre, abrindo caminho por entre andaimes e pedras soltas.
Parou diante de uma pequena cúpula. Apesar de a decoração não estar ainda concluída, via-se nitidamente um mosaico que representava três anjos alados diante de uma figura masculina. Ignazio notou imediatamente a semelhança com uma das miniaturas do códice alexandrino. Uberto examinou as figuras angélicas. À sua direita, percebia-se uma árvore ainda incompleta. Parece uma cena do Velho Testamento, disse ele, sem que ninguém lhe houvesse perguntado nada. Representa os três anjos que apareceram a Abraão. Mas repare bem no quarto homem à esquerda, meu jovem, respondeu o nobre, alisando os cabelos. Aquele não é Abraão, mas o Pai Celestial. O mosaico representa o terceiro dia da Criação. Os seres alados, que chama de anjos, indicam os dias transcorridos desde o início da obra divina. São símbolos do tempo. Uberto enrubesceu. Bela figura tinha feito!, ele pensou. É o que se ganha dizendo despropósitos. No entanto, interveio Ignazio com o indicador erguido, essas criaturas aladas são mais misteriosas do que parecem». In Marcello Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.

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