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Trabalho
apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco
para a obtenção do grau de doutor em Teoria da Literatura
Dama Christine Pizan
«(…) Ao observar, entre aquelas
obras escritas por mulheres, um inegável contorno dessa écriture féminine, pus-me a
lembrar-me do célebre artigo de Barthes, La mort de l´auteur, onde ele destitui o autor da condição
que lhe foi atribuída, a de paternidade do texto. Diante da intrínseca relação
da enunciação com o eu enunciador, seria possível fazer a leitura daqueles
textos femininos, como sendo textos órfãos? Poderíamos pensar a escrita feminina
apenas como linguagem desprovida de uma autoria? Acredito que seria inútil tentar
afastar o sujeito feminino das suas crias, como se o corpo do texto não fosse o
mesmo constituído do sujeito. Barthes poderia até estar certo, ao referir-se à
morte do autor, mas não o seria referindo-se a autoras, ou a outra autoria
marginalizada: étnica, homossexual, colonizada, na medida em que, como salienta
Edward Said:
Os estudos feministas, assim como
os estudos étnicos ou imperialistas, promovem um deslocamento radical de
perspectiva ao assumirem como ponto de partida das suas análises o direito dos
grupos marginalizados de falar e representar-se nos domínios políticos e
intelectuais que normalmente os excluem, usurpam as suas funções de
significação e representação e falseiam as suas realidades históricas.
Importante no seu contexto de
efervescência do Maio 68 na França, a proposta de Barthes de morte do
autor marca a passagem do estruturalismo sistemático ao pós-estruturalismo da
desconstrução, que propõe o descentramento da noção de sujeito, e introduz as
ideias de alteridade, da diferença, da marginalidade. Os pós-estruturalistas
Derrida, Foucault, Deleuze, Khristeva tiveram papel inegável na desconstrução
da soberania falocêntrica como identidade subjectiva. Seria preciso desconfiar
desse primado masculino da palavra e abrir espaço à questão da alteridade, conceito
que influenciou de forma marcante grande parte das teorias feministas. No
entanto, como ressalta Heloísa Buarque de Holanda, o pensamento pós-estruturalista
e as teorias feministas se distinguem pelo compromisso feminista com a articulação
da crítica da hegemonia do idêntico e da legitimidade dos sentidos absolutos e universais
com os processos históricos de construção e representação da categoria mulher.
Outro ponto de distinção entre os discursos pós-estruturalistas e os da crítica
feminista é que se os primeiros falam de uma crise da representação e da morte
do social, o segundo fala exactamente da necessidade de uma luta pela
significação. A busca por esse espaço significante na História constitui a
essência da escrita feminina como meio de libertação através da autonomia de
expressão. A questão da autonomia apresenta-se como o desafio feminino enquanto
sujeito colectivo de construir uma outra verdade livre das estruturas de poder
e dominação características do discurso androcêntrico. Segundo Oberti:
O patriarcado, ou como queiramos
denominar o sistema de dominação, não é um sistema fechado [...], mas sim
formas hegemónicas de poder, masculino, que revelam as suas próprias falhas
[...] a tarefa estratégica do feminismo é explorar essas brechas onde houver e
também ajudar a produzi-las.
Entre tais brechas, o olhar
feminino foi focalizando a sua própria representação do mundo e expressando-a a
duras penas através da escrita. E, o resultado dessa autoconsciência estava ali
naquelas estantes da biblioteca Marguerite Durand: um grande monumento da
memória feminina.
Escrever a história das mulheres
continua ainda nos nossos dias uma tarefa intricada. Malgrado o reconhecimento
da escrita das mulheres, enquanto objecto e sujeito, proclamada em especial nos
anos 70, com o movimento de libertação das mulheres, a questão actual continua
emaranhada de interrogações, de pré-julgamentos, de buscas, reivindicações,
como sempre aconteceu nas tentativas femininas de escrever a sua própria história,
de romper com o olhar androcêntrico da história no masculino. Se figuras
femininas, a partir do fenómeno literário e cultural da Querelle des femmes (estendido
por quatro séculos, entre o século XIV e o XVII), sempre mantiveram a sua
participação no processo de elaboração e desenvolvimento de grandes debates
políticos e intelectuais do momento, tiveram que resistir a vários obstáculos,
percorrendo um caminho muito mais longo e espinhoso do que aquele dos homens.
As portas fechadas das universidades, a concepção reinante de uma natural
inferioridade intelectual, os preconceitos morais da profissionalização
feminina e todas as estratégias possíveis de torná-las excluídas do saber e da
construção política e mental da sociedade, são testemunhos, de um lado, da dificuldade
enfrentada pelas mulheres do saber, e do outro, da impossibilidade de nulificar
o saber feminino, ao tentar condenar as suas ideias ao esquecimento». In Luciana Eleonora F. Calado, A Cidade
das Damas, A construção da memória
feminina no imaginário utópico de Christine de Pizan, Teses de Doutoramento,
Universidade de Pernambuco, Recife, 2006.
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