«(…) Não é bem
isso..., mas recupera-o de outra maneira. Poker, disse Felsen,
pensando que ia ser um jogo muito descontraído… É um jogo muito internacional,
disse o oficial-às-ordens, levantando-se. Então, às sete horas? Black tie, creio. Eva Brücke estava sentada à
secretária do pequeno gabinete do seu apartamento, num 2º andar da
Kurfürstenstrasse, no coração de Berlim. Vestia apenas uma combinação por baixo
de um pesado quimono de seda preta com motivos dourados de dragões e cobrira os
joelhos com um cobertor de lã. Ia fumando, a brincar distraidamente com uma
caixa de fósforos e a lembrar-se do mais recente cartaz afixado no quadro de
anúncios do prédio. Dizia ele: mulheres alemãs, o vosso líder e o vosso país
confiam em vós. Soava-lhe nervoso e inseguro, como se os nazis, ou talvez
apenas Goebbels, revelassem um receio inconsciente do incomensurável mistério
do belo sexo. O pensamento fugiu-lhe da propaganda para o seu clube nocturno do
Kurfürstendamm, Die Rote Katze. Os
lucros tinham-se multiplicado nos últimos dois anos, simplesmente porque ela
sabia o que agradava aos homens. Bastava-lhe olhar para uma rapariga e via os
pequenos rastilhos que incendiavam os homens. As animadoras dos seus clubes nem sempre eram beldades, mas tinham sempre uma
qualidade especial, talvez uns angelicais olhos azuis, um torso delgado, longo,
vulnerável, ou uma boquinha tímida, numa combinação perversa com a sua total
disponibilidade, a sua prontidão em fazer qualquer coisa que esses homens
pudessem imaginar. Endireitou os ombros e puxou o cobertor pendurado nas costas da cadeira,
embrulhando-se nele. Começava a sentir-se tonta por fumar tanto e tão depressa,
tão depressa que a ponta do seu cigarro era um longo, fino, aguçado lápis. Isso
só acontecia quando se irritava, e pensar em homens irritava-a. Os homens só
lhe arranjavam problemas, nunca lhe resolviam nenhum. Pareciam ter sido feitos
para inventar complicações. O amante dela, por exemplo. Porque não havia ele de
fazer o que lhe competia e amá-la, simplesmente amá-la? Porque havia de querer
ser dono dela, interferir na sua vida, ocupar o seu território? Porque havia de
ter a mania de levar coisas dela? Com um piparote atirou a caixa de fósforos
para cima da secretária. Ele era um homem de negócios, e isso, naturalmente,
era o que os homens de negócio faziam, acumular coisas. Tentou não pensar nos
homens, sobretudo nos seus clientes e nas suas visitas às traseiras do clube,
onde se sentavam a fumar e a beber, cheios de falinhas mansas até chegarem ao
que pretendiam, e que era sempre uma
coisa especial, qualquer coisa realmente especial. Devia ter sido médica, um
daqueles médicos à nova moda que curavam os doidos a falar com eles, porque, à
medida que a guerra se prolongava, tinha verificado que os gostos dos clientes mudavam.
Agora era habitual incluírem, como tinha descoberto à sua custa, um componente
de dor, tanto provocá-la como, numa espécie de compensação, sofrê-la. E também
havia aquele homem que tinha vindo com um pedido que nem ela sabia se poderia
satisfazer. Um homem tão discreto, apagado, calado, que ninguém adivinharia...
Bateram à porta. Eva apagou o cigarro, libertou-se dos cobertores
e tentou tufar com os dedos o cabelo loiro, mas desistiu quando se viu ao
espelho sem pintura. Apertou o cinto do quimono e foi abrir. Klaus,
disse, forçando um sorriso. Não te esperava. Felsen puxou-a para si ali mesmo
no patamar e beijou-a com força na boca, desesperado depois de dois dias no
quartel. Fez deslizar a mão pelas costas dela abaixo. Ela empurrou-o levemente
com os punhos cerrados, afastando-se. Estás
todo molhado e eu ainda agora acordei. E depois? Ela voltou para dentro, foi
pendurar-lhe o chapéu e o sobretudo e encaminhou-o para o gabinete. Ele
seguiu-a, coxeando ligeiramente. Eva nunca usava a sala de estar, preferia
divisões pequenas. Café?, perguntou ela, já a caminho da cozinha. Tinha pensado... Café
de verdade. Com brande? Felsen
encolheu os ombros e foi sentar-se no gabinete, na cadeira dos clientes em
frente da secretária. Acendeu um cigarro e retirou da língua os fiapos de
tabaco. Eva voltou com o café, duas chávenas, uma garrafa e cálices. Tirou-lhe
um cigarro, que ele acendeu. Não
sabia onde isto tinha ido parar,
disse, aborrecida, arrancando-lhe o isqueiro da mão». In Robert Wilson, Último Acto em Lisboa,
1999, tradução de Maria Douglas, Gradiva Publicações, Lisboa, 2004, ISBN
978-972-662-762-1.
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