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O padre foi à casa de banho, vestiu o
pijama, ajoelhou-se ao pé da cama, rezou por uns 15 minutos, deitou-se e apagou
a luz da cabeceira. O silêncio tomou conta do edifício e já fazia
algum tempo que não se ouviam as conversas dos peregrinos, que deviam estar
cansados e tinham-se recolhido no albergue. Era meia-noite quando abriu a porta
do armário, segurando o cajado na mão direita, mas calculou mal a altura e fez
barulho ao tocar no chão. O padre acordou assustado e acendeu a luz: quem é
você? Sou um peregrino e preciso fazer uma confissão especial. Só o senhor me pode
perdoar. Você...!, exclamou o padre, horrorizado. Você é o demónio. E estava a espiar-me.
Sem esperar mais, lançou o cajado contra o padre, que pôs as duas mãos na
frente do peito para se proteger, mas não conseguiu evitar que a lâmina
entrasse sem piedade no seu corpo, atravessando-o. Um grito agudo ecoou pela
noite adentro. O vulto abriu a janela e desceu pela corda que havia deixado
presa pelo gancho do lado de fora.
Depois
da missa, Maurício foi até ao restaurante do hotel. Outra das tradições do
Caminho é o prato do peregrino, normalmente uma salada, duas opções de prato
principal, uma garrafa de vinho, pudim de caramelo ou iogurte de sobremesa.
Restaurado com a ceia e mais animado com o efeito do vinho, voltou para o
albergue. Tinha comprado um guia na livraria da Colegiata e estudou o trajecto
para o dia seguinte, que terminaria em Larrasoana. Nem sempre se encontra leito
livre nos albergues indicados pelo guia, porque a maioria dos peregrinos acaba
indo para os mesmos lugares. Massajou a sola do pé com um creme bactericida,
para se prevenir contra as bolhas e se aconchegou no travesseiro. A noite era
uma orquestra com roncos de todos os sons. Mas quem chegava ali, depois de ter
atravessado os Pirenéus a pé, não se importava com roncos e acomodações
simples. O sono era pesado e o dia seguinte seria outro árduo dia de caminhada.
Adormeceu, mas, de repente, acordou assustado. Que barulho teria sido aquele? Um
grito? Será que ouvi um grito?
Uma
mulher com aparência de 30 anos tinha tentado levantar-se para ir à casa de
banho, mas tropeçara em alguma coisa e caíra. Logo em seguida, acendera uma
pequena lanterna e fora saindo devagar por entre as camas. Não coxeava e,
portanto, não fora nada grave. Teria sido uma infelicidade ferir-se logo no
início do Caminho. Mas por que será que ela não acendera a lanterna, antes de
se levantar? Um dos equipamentos mais importantes do peregrino é a pequena
lanterna para quando se levanta muito cedo, ou então para ir à casa de banho,
sem ter de tropeçar nas mochilas deixadas ao lado das camas nos albergues. Por
que ainda a ideia de correr a luz pelas camas como se ela quisesse conferir
alguma coisa?
Presságios. Não gostava de presságios. Se não bastassem aqueles acontecimentos
nos Pirenéus, agora vinham os tropeções dessa mulher atrapalhar o seu sono.
Esticou-se na cama e tentou dormir. Quem se teria deitado naquele leito na noite anterior? Aquela cama o
aceitara com uma indiferença de quem já tinha recebido pessoas desconhecidas
durante séculos. Ruminava estranhas preocupações e viu o vulto da mulher de
retorno ao seu lugar. O cansaço e o silêncio venceram os seus receios e voltou a
dormir. Acordou com a sensação de que dormira o suficiente. Melhor assim. Mas não fora um
sono tranquilo, desses que deixam o corpo e a alma concorrendo em bem-estar
no dia seguinte, porque tinha a confusa lembrança de vultos parados perto de
seu beliche. Amanhecia, e é uma boa estratégia levantar-se cedo para aproveitar
a parte da manhã, por causa do sol inclemente nessa época do ano. Não eram ainda seis horas
quando se levantou. O albergue oferecia um café simples, mas o bar no pátio da
Colegiata tinha uma refeição completa». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra,
Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.
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GEditorial/JDACT