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e wikipedia
Santarém.
Fevereiro de 1147
«Regressado
a Coimbra, Mem notou a forte agitação bélica que sacudia Afonso Henriques,
claramente preparado para iniciar uma importante campanha. Embora ele e eu ainda
não o soubéssemos, o nosso rei já tinha informações seguras de que uma armada de
cruzados, vinda do Norte da Europa, iria ajudar-nos a tomar Lisboa, no Verão. João
Peculiar, arcebispo de Braga, encontrara-se novamente com Bernardo de Claraval,
patrono dos templários e grande promotor das cruzadas, que o avisara dos preparativos.
E o forte empenho do nosso rei crescera também, pois Afonso VII conquistara Calatrava
e aproximava-se de Almeria. Se o primo direito atingisse o mar mediterrânico,
Afonso Henriques precisava de um troféu semelhante, para não se deixar ofuscar.
Rival em esplendor, provoca muita
dor.
Mem pressentia que tomar Lisboa
era agora possível, pois a convulsão andaluza, cujo zénite sangrento se atingira
com a morte de Ismar, resultara num vasto território dividido por inúmeros e fracos
emires, que dominavam pequenas taifas independentes. Granada, Almeria, Cáceres,
Sevilha, Córdova, Badajoz e Mértola viviam de costas voltadas, facilitando a vida
aos cristãos.
Desunião a alastrar, derrota a chegar.
No Al-Gharb, por exemplo, o regressado
Ibn Qasi, marido da princesa Zaida, dominava Mértola e Silves, mas o férreo jugo
religioso que impunha não seduzia os locais, tornando a sua expansão para norte
impossível, pois, centrado em Badajoz e dominando Évora e Beja, o hábil Ibn Wasir
caíra nas boas graças dos almóadas africanos.
Ao esperto traidor, muitos dão valor.
Em Santarém, também o governador Abu
Zhakaria se encontrava numa situação de fragilidade evidente. Não dispunha de exércitos
vastos, nem conseguira impor a sua autoridade em Lisboa, que se governava a si própria,
embora os fanáticos Mantos Vermelhos tivessem perdido a sua aura letal, pois Orimar,
a Pústula, estava doente e só lhe restavam Raimunda e três feddayins.
Erva daninha, morre sozinha.
Com tanta trapalhada muçulmana e
sem um poder forte e capaz de as auxiliar, Santarém e Lisboa estavam à mercê dos
cristãos. Há longos meses que Afonso Henriques o sabia, mas só agora ficara em condições
de lançar um ataque demolidor, como confirmou a Mem no dia em que nomeou Pêro Pais
alferes portucalense. É tempo de guerra.
A primeira prioridade era, no entanto,
Santarém, e antes de romper as tréguas com Abu Zhakaria, acordadas no ano anterior,
Afonso Henriques desejava ter fiáveis informações sobre as defesas da cidade. Como
Mem se dava bem com o governador e sua mulher, Fátima, o rei de Portugal atribuiu-lhe
uma missão especial. Ide e falai com o wali, mas abri bem o olho, ordenou.
O agora cavaleiro e dono de Almourol,
cujas obras estavam praticamente terminadas, tinha uma adicional razão para visitar
Santarém: queria relatar a Fátima a infelicidade que assolava a existência da irmã,
a princesa Zaida.
Mulher de um louco, vive muito pouco.
Corriam rumores de que os almóadas
se preparavam para apostar apenas em Ibn Wasir, deixando cair Ibn Qasi, e esse era
o pretexto de que Mem precisava para sondar Fátima sobre a possibilidade de
Zaida, depois de fugir de Silves, se refugiar, em Santarém, junto da irmã. Irei
raptá-la, declarou Mem. O rei de Portugal relembrou-o de que não podia esquecer
o objectivo último da ida a Santarém. Os seus desejos privados não se podiam
sobrepor às necessidades do reino. Descansai, assim farei, prometeu o novo cavaleiro.
O antigo almocreve chegou a Santarém
ao final de uma manhã e descobriu uma cidade vibrante, onde abundava o comércio.
A paz com os cristãos e a distância das guerras da Andaluzia haviam permitido a
bonança e a prosperidade. Viam-se alguns soldados, nos portões e na muralha, mas
pelas ruas da agitada almedina poucos caminhavam, pois os exércitos de Zhakaria
tinham sido desmobilizados. Se o ataque portucalense fosse furtivo e intenso, dificilmente
Santarém poderia sustê-lo.
Com esperta manha, atinge-se uma
façanha.
Pelas ruas e ruelas, muitos o reconheceram.
Como almocreve, Mem construíra uma excelente reputação de fornecedor fiável, sendo
também recordado pelas mulheres corno um meigo galanteador. Algumas, ao verem-no
vestido de cavaleiro, agitaram-se, esperançadas». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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