As
Crianças de Cárquere. 1146
Coimbra,
Março de 1146
«(…) Tantos
homens me desejaram, até o imperador! De súbito, Chamoa sentiu uma inesperada
revolta. Não aceitava aquele desatino submisso, tanta perna aberta para nada!
Prometeu agir e dona Justa franziu a testa, preocupada.
Coimbra.
Páscoa de 1146
Uma semana antes do casamento
real, Chamoa anunciou que não iria comparecer, pois tencionava rumar ao
Mosteiro de Pombeiro para passar o Domingo de Páscoa com o pai, Gomes Nunes, que
lá se exilara a mando de Afonso VII. Antes assistir à tristeza de meu pai do
que presenciar o triunfo da francesa! Logo que Afonso Henriques soube destas
intenções, mandou chamar à sua presença Mem e pediu-lhe: tendes de convencê-la
a assistir à boda! De início, o almocreve recusou. Mas o rei de Portugal não
foi em conversa fiada. Mem, escusais de fingir, sei que a filhais! Espantado,
arqueei as sobrancelhas e por momentos temi que Afonso Henriques fosse soltar as
suas lendárias fúrias, sentindo-se encornado por Mem. No entanto, a cólera não
lhe surgiu, pelo contrário. Compreendia Chamoa, que necessitava de um ombro
onde carpir as mágoas, agora que ele ia casar. E Mem era amigo dela há muitos
anos. Ela contou-me o que se passou durante o cativeiro, na serra Morena,
adiantou Afonso Henriques, como se aceitasse algo inevitável. Nunca soube estar
sozinha. Aceitava a existência de um amante, mas não que se ausentasse do
casamento real, pois isso ofenderia a francesa, que jamais a deixaria voltar a
Coimbra.
Chamoa sempre quis ser rainha,
não podeis obrigá-la a assistir ao vosso casamento!, contestou Mem. Isso é uma
tolice!, ripostou o rei de Portugal. O matrimónio real não passava de um
arranjo para agradar ao Papa e lhe dar a ele uma descendência legítima. Bem mais
importantes seriam as semanas seguintes! Egas Moniz está a morrer...
Subitamente pesaroso, Afonso
Henriques recordou o agravamento da doença de meu pai, que não voltara a sair de
Lamego. A sua esperada morte impunha mudanças na corte e para substituir o mordomo
do reino o candidato mais consensual era Peres Cativo, nascido na Galiza, coisa
que provocava desconforto em alguns. Sobretudo em Gonçalo Sousa. Vai levar a
mal!, avisei.
O nosso alferes sempre fora dado
a amuos intempestivos. Embora tivesse recebido inúmeros castelos no Entre Douro
e Minho, como paga pelos préstimos guerreiros, não tinha os desejos de grandeza
satisfeitos e iria revoltar-se se fosse preterido na nomeação para mordomo,
demitindo-se prontamente do cargo de alferes. Também me parece, murmurou Afonso
Henriques. Seria, portanto, necessário escolher um novo comandante das tropas e
a tradição portucalense apontava para a nomeação de um jovem. Pêro Pais tem dezanove
anos, é bom com a espada e sabe comandar. Será o próximo alferes, anunciou o rei.
Mas, se Chamoa ofendesse a rainha com a sua ausência no casamento real, a
nomeação do filho tornar-se-ia impossível.
Assim, cabia a Mem a tarefa árdua
de a convencer, para a qual podia contar com um relevante aliado. Pêro Pais
deseja o posto de alferes. E também quer permanecer em Coimbra por razões menos
nobres..., afirmou o rei, com um sorriso matreiro. O filho mais velho de Chamoa,
a despontar como macho impetuoso, aproveitara a prolongada ausência de Mem para
alimentar uma forte amizade com as irmãs moçárabes, Ália, Élia e Ília. Ele não se
amigou com as três, só o fez com a Ília! enxofrou-se o almocreve. Afonso Henriques
soltou uma sonora gargalhada. Mem, garanto-vos que o Pêro não petisca só a Ília!
Com requintada maldade e evidente gozo, o nosso esperto rei executou assim a sua
fria vingança, mostrando ao rival que, se o encornava às escondidas, tal não o livrava
de ser também enganado pelas moçárabes e por um jovem». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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